Retirado da: http://www.revistapessoa.com/2015/07/o-nonada-no-mundo/
Como o Maurício Meireles noticiou em
O globo há
algumas semanas, estou na rua, no meio do redemoinho, às voltas com a
possível (necessária, desejada, mirabolante) retradução para o inglês de
Grande Sertão: Veredas, do inestimável João Guimarães Rosa.
Digo “possível” porque ainda estou tentando viabilizar o projeto. Tudo é
e não é… Mas vamos por partes.
A história do romance em inglês é uma verdadeira saga. Como não é
muito conhecida fora do meio acadêmico, vou contar um pouco aqui.
A obra magna do Rosa já foi publicado em inglês, em 1963, como The Devil to Pay in the Backlands, pela prestigiosa editora nova-iorquina Alfred A. Knopf, responsável pela publicação de diversos autores do boom
latino-americano dos anos 1960 e 1970. A primeira tradutora (o fato de
ter tido mais de um já, por si, deveria ser uma alerta) foi a Hariett de
Onis, uma das principais tradutoras do espanhol da época, que tinha
“descoberto” a obra do Joãozinho e levado à atenção da editora. Mas, em
determinado momento, a Hariett abandonou o projeto por motivos pessoais.
O lexicógrafo James Taylor – responsável por um dos melhores
dicionários do português para o inglês que conheço – terminou a tradução
e a Hariett fez uma revisão final. Ninguém sabe ao certo onde fica a
costura entre uma parte e outra, o que, teoricamente, deveria ser uma
coisa boa. Mas o fato é que a tradução deixou um pouco a desejar. Um
pouco muito, na verdade.
Na época, saiu uma resenha no New York Times, do influente
crítico literário Willian Grossman, com o título “Outlaw With a Problem”
(Jagunço com um problema). A versão americana não é de todo ruim,
reconhece o Grossman, e eu concordo. É de leitura gostosa, fluida – o
texto é envolvente e a história para em pé em outra língua. O problema é
que a parte mais inovadora do romance foi subtraída. Porque, além de
ter sofrido diversos cortes de trechos mais complexos, a tradução não
reproduz a linguagem colorida e idiossincrática do Rosa. Transmite
apenas o enredo, numa prosa mais convencional.
Às vezes me pego pensando na Hariott – que tinha o português como
terceira língua, não tão fluente quanto seu espanhol – sentada lá com a
máquina de escrever, tentando atravessar aquela vasta areia movediça da
linguagem roseana que vai de capa a capa. Seria difícil hoje… que dirá
no fim dos anos 1950, sem email, sem o Google, sem o Skype. Sem toda a
fortuna crítica que foi erigida ao longo das seis décadas desde a
publicação do livro no Brasil. Para tirar dúvidas, era necessário trocar
cartas com o autor, um processo que não deve ter sido nada ligeiro na
época. E eu, que já traduzi algumas páginas desse livro, sei que as
dúvidas são praticamente infinitas.
Há quem diz que a Hariott desistiu por motivos de saúde, mas me
lembro de ter lido (ou ouvido?) em algum lugar que ela teria escrito uma
carta para o Alfred Knopf, dono da editora, dizendo que estava levando
muito tempo e que, se continuasse na empreitada, não faria mais nada da
vida. O que entendo 100%. Seja qual for a razão verdadeira – talvez até
uma combinação das duas –, imagino que a dificuldade do projeto tenha se
apresentado como um rio intransponível para ela. Sei bem o que é ver o
dinheiro do adiantamento acabando, as contas acumulando, e o trabalho
não engrenar, não sair da primeira marcha por causa da dificuldade.
Mas a prosa mais domesticadora da versão em língua inglesa não deve
tudo à dificuldade do texto em si. Também havia, naquele tempo, uma
tendência a transpor textos estrangeiros para um contexto mais familiar,
o que a Onis e o Taylor fizeram com êxito, buscando referências do
velho oeste americano na sua tradução. Acreditaram que era para o bem do
livro, porque era o que se acreditava então.
O próprio Rosa, que acompanhava a tradução de longe, por cartas, caia
em contradição, ora perguntando se não era possível recriar a linguagem
exótica do original em inglês, ora elogiando a tradução e citando a
“maior fluidez” como algo positivo. Imagino que tenha sido atordoante
para ele: por um lado, escritor, exigente com ele mesmo, disposto a
correr riscos com a linguagem e levá-los até as últimas conseqüências,
razão pela qual Grande Sertão: Veredas existe; por outro,
diplomata, acostumado a negociar e conduzir várias partes para um
entendimento. Ansioso, por um lado, que a tradução representasse bem o
original; impaciente, por outro, que fosse aceito e lido pelo maior
número de pessoas. Ele queria muito que seu sertão ganhasse o mundo e
via o mercado de língua inglesa como a porta de entrada.
O livro em sua encarnação de língua inglesa – diferente da carreira
em outros idiomas – não chegou nem a uma segunda tiragem. Parou na
primeira – uma edição linda de capa dura. Vendeu em torno de 2 mil
exemplares e foi caindo no esquecimento. Mas não completamente.
The Devil to Pay in the Backlands é objeto de um site nos Estado Unidos,
A missing book,
organizado pelo Felipe W. Martinez, que reúne diversos artigos
acadêmicos, matérias de jornal e entrevistas sobre a obra. Em 2002,
constou numa lista dos “100 melhores livros de todos os tempos”
publicada no jornal inglês
The Guardian. A lista foi apurada a
partir de indicações de escritores do mundo inteiro. Alguns meses atrás,
João Guimarães Rosa constou em outra lista, do Literary Hub, de “10
excelentes escritores que ninguém lê”, que atribui o problema à
“tradução imperfeita” de 1963, e ao fato desta estar fora de catálogo há
décadas. Também levanta a hipótese de o livro ser “intraduzível” –
teoria que cai por terra quando se considera as traduções bem-realizadas
para outros idiomas.
Apesar da recepção morna da tradução americana e da opinião unânime
de que a obra carece de uma nova tradução, poucos se atreveram a se
aventurar na empreitada, e, dessas tentativas, nenhuma vingou. Uns anos
atrás, um renomado agente literário americano traduziu cerca de 40
páginas antes de desistir por falta de tempo. Dizem que o célebre
tradutor Gregory Rabassa – responsável pela tradução de diversos
clássicos latino-americanos – também teria se interessado, mas em algum
momento percebeu que não haveria tempo hábil. Uma terceira pessoa que
seria um candidato ao posto disse numa entrevista que só poderia se
dedicar à tradução se ganhasse na loteria. Outros aspirantes chegaram a
produzir amostras do livro em inglês, mas não obtiveram aprovação, ou
desistiram quando se deram conta da enormidade da travessia. Estão
percebendo o padrão?
Quase todas as traduções desse tipo são feitas por professores
universitários, que conseguem inserir a tradução nas suas atividades
acadêmicas remuneradas. Lá se vão anos, e um dia o livro sai. Todas as
outras pessoas com as qualificações necessárias para sequer tentar a
tradução de Grande Sertão: Veredas desistiram – ou nem
começaram – por contingências da vida prática. Perceberam que o dinheiro
não estica tanto; e o que as editoras poderiam pagar pela tradução
cobriria as contas por alguns meses, mas não pelos anos de pesquisa,
consultas, imersão, elaboração e infinda revisão necessárias para um
trabalho desse porte.
Daí o impasse, as desistências todas. E é por isso que estou atrás de
apoio externo, porque simplesmente não tenho condições de ir tocando a
tradução em paralelo com outras coisas (primeiro, porque requer uma
atenção não-fragmentada; segundo, porque iria demorar uma eternidade) ou
parar tudo e fazer a tradução por conta própria (aquela velha história
das contas pra pagar). Há quem se interessa em financiar o projeto,
editoras dispostas a publicar a tradução nos Estados Unidos, na
Inglaterra e no Brasil, numa edição bilíngue, mas ainda tem um tanto de
burocracia pela frente. Dedinhos cruzados para que se resolva em breve!
Mas vamos ao que realmente interessa: dadas as condições de trabalho certas, é possível fazer uma tradução de Grande Sertão: Veredas
que não sofra muitas perdas? Acredito que sim. A extração dos sentidos
contidos no original vai dar trabalho, e muito. Mas a solução está na recriação,
mais do que na tradução, se é que me entende. Em outras palavras: o
Guimarães Rosa escreveu um romance. Terei de traduzí-lo. Mas ele também
inventou um dialeto ficcional no qual a história é contada. E esse
dialeto, cheio de neologismos e sintaxes exóticas – essa alquimia
lingüística roseana que tanto encanta os leitores –, não tem tradução.
Tanto que deixaram fora da versão de 63. Terei de reinventá-lo na minha
língua, numa espécie de laboratório poético, buscando ritmos,
aliterações, registros, arcaísmos, coloquialismos e tudo o mais que já
existe no inglês, ao mesmo tempo que vou ter que criar os neologismos e
novas sintaxes de um sertão literário que espelha o original, mas que
não é, obviamente, uma cópia exata dele. A salvação está na criatividade
do original. Diferentemente de outras traduções, não será o fim do
mundo se não existe uma tradução precisa para determinada palavra ou
frase em inglês. Posso recorrer ao neologismo, desde que faça sentido
dentro do contexto da frase e do trecho, desde que orne. Se não houver
um jeito idiomático de dizer tal coisa em inglês, tudo bem, já que nada é
exatamente idiomático no original. O que não quer dizer que vou sair
por aí inventando coisas que não estão no livro, apenas que as
possibilidades para encontrar soluções são mais amplas, tão vastas
quanto a imaginação. Quer dizer que, neste sertão das palavras, onde
tudo é e não é, as veredas são muitas.
Alison Entrekin é tradutora literária australiana radicada no Brasil. Verteu para o inglês Cidade de Deus, do Paulo Lins, O filho eterno, do Cristovão Tezza, Perto do coração selvagem, da Clarice Lispector e Budapeste, do Chico Buarque, entre outros.