O golpe e o asco da
família tradicional branca ao não convencional.
O país atravessa a
maior crise institucional desde a redemocratização. Depois de um processo de
impeachment considerado por renomados juristas como golpe, o país mergulha em
uma crise política e econômica que turva o futuro do país. Mais de 54 milhões
de votos foram desconsiderados e uma presidenta eleita foi deposta. A ascensão
do país como uma das maiores economias, uma das maiores reservas energéticas do
mundo, com vastas áreas agricutáveis e grande mercado consumidor interno, corre
grande riscos.
A nação encontra sobre
um governo ilegítimo, com reformas recessivas que não foram legitimadas em
eleições, cada dia mais sem rumo. Escolas estaduais ocupadas, greves de
universidades federais, manifestações, o país encontra-se em grande ebulição.
Mesmo que os grandes meios de comunicação não noticiem de maneira substancial
os protestos contra o Governo Temer e suas medidas regressivas, o país está
fervendo.
Antes de deposição da
representante do executivo eleita democraticamente eleita, um grande
descontentamento social da chamada classe média ajudou à consolidação do golpe.
Mesmo tendo favorecido a classe médica com aumento de concursos públicos e
valorização da carreira de servidores públicos, diminuído à níveis históricos o
desemprego, aumentando o poder de consumo, o grau de insatisfação em relação ao
governo da presidenta Dilma e seu Partido dos Trabalhadores atingiu altos
patamares, chegando ao ponto de se tornar para alguns, verdadeiro ódio. Assim,
muitos questionam o fato de que nos governos petistas, a classe média ter
conseguido avanços em seus direitos e mesmo assim reprovar veemente tais
governos.
É notório que a
chamada grande mídia corporativa contribuiu para tal percepção. Cobertura
distorcida e desonesta, certamente ajudou a gerar tal rejeição. Fora os erros
de tais governos, seja de sua incapacidade de se comunicar com a classe média e
mostrar os vários avanços, seu envolvimento com ações no mínimo nebulosas do
ponto de vista ético, ou com as últimas decisões do governo Dilma de que, mesmo
que momentaneamente, adotar medidas governamentais de cunho neoliberais,
contrariando seu programa apresentado na eleição, dando a impressão de fraude
eleitoral.
Porém, em que pese o
fato de tais argumentos serem consideráveis, as forças que moveram o golpe,
souberam utilizar certos sentimentos da classe média para legitimar a tomada do
poder. Com intuito de acabar com o arremedo de Estado de Bem Estar Social
brasileiro buscado pela Constituição de 88 e garantir ao capital especulativo a
continuidade de seus lucros estratosféricos, além de tirar os recursos do pré-sal
das mãos do Estado Brasileiro, os golpistas souberam usar o medo da classe
média.
Os governos petistas
governaram conciliando interesses do grande capital com distribuição de renda,
fortalecimento do mercado interno, inclusão social e da soberania nacional. O
grande capital lucrou como nunca, mas tais governos conseguiram incluir na
sociedade um grande percentual antes marginalizados. Porém a crise de 2008 que
atacou em cheio o primeiro mundo e em 2014 chegou ao Brasil, não possibilitava
mais tal conciliação. O grande capital não queria arriscar mais com um governo
progressista e tramou a apeada do poder da presidenta eleita.
Assim, viram que
fomentar o ódio da classe média seria uma maneira de deslegitimar a governante
eleita.
A inclusão social dos
últimos 13 anos mudou claramente a sociedade brasileira. Debates sobre Direitos
Humanos, igualdade de gênero, combate o racismo, combate à homofobia, trouxeram
polêmicas escanteadas para baixo do pano por muitos anos.
As universidades
passaram a receber uma legião de excluídos. Os aeroportos passaram a ser
frequentados por pessoas que nunca imaginaram ter acesso ao transporte aéreo.
Shoppings Centers passaram a ficar lotados de pessoas da periferia (os famosos
rolezinhos). O Presidente Lula certa vez disse, com sua habitual capacidade de
perceber as coisas, que a madame ficava contrariada em saber que a
"sua" doméstica usava o mesmo perfume que ela.
Em uma escola ocupada
na periferia de Uberlândia/MG, tive a oportunidade de conversar com uma
universitária do curso de psicologia que estava dando apoio à ocupação. A moça
inicialmente me contou sobre como estava dando suporte emocional aos
secundaristas. Moça de cor parda, obesa e com cabelo diferente do padrão da
classe média tradicional, me contou um pouco de sua vida. A meu ver revela
muito sobre o que passa o país. Cotista de escola pública, estudou em escola
estadual de periferia por toda sua vida escolar. Lamentou que outros de seus
colegas da escola pública não tiveram a mesma oportunidade de que ela, mas que
o que para a geração de seus pais era impossível, para ela foi alcançado,
ingressar em um curso disputado da Universidade Federal.
Relatou que quando
adolescente, se descobriu atraída por meninos e meninas e que isso lhe causou
um grande sentimento de culpa e angústia que por anos atormentou sua vida. Que
vinda de uma família de tios pastores neo pentecostais, sofreu bastante
discriminação familiar ao não se enquadrar no padrão de mulher submissa imposto
pela sociedade conservadora. Também se sentiu discriminada pelo próprio
movimento LGBT ao se assumir bissexual. Dentro da universidade, sempre se
sentiu deslocada. Contou que luta para que os grupos de estudos da universidade
possam fazer orientação nas escolas, pois os adolescentes têm várias angústias
sobre sua sexualidade.
Assim, ao conversar
com uma menina bissexual, obesa, parda e independente, cursando um curso
superior, antes destinado apenas para as elites brancas, supostamente
heterossexuais, conservadora e cristã, notei o quanto o Brasil mudou nos últimos
anos.
A classe média branca,
heterossexual, conservadora e cristã teve agora que conviver em mesmos espaços
com pessoas que antes eram trancadas em armários ou em senzalas. Antes dos anos
lulistas que abriram uma fresta para que os excluídos fossem aceitos no baile,
era comum e aceito pela grande massa do precariado, que o destino lhes tinham
reservado a semi escravidão e a sujeição submissa aos seus patrões. Hoje, os
jovens que ascenderam nos últimos anos não aceitarão mais trabalhar como
escravos ou se sujeitarem à padrões conservadores impostos unilateralmente pela
sociedade.
A classe média, que se
via em seus retratos de família como uma família de comercial de margarina, se
viu totalmente assustada ao saber que sua prole estará em contato com o que não
é espelho, como muito bem descrito MARIA BITARELLO no artigo do excelente
site outraspalavras.net, que transcrevo abaixo:
POR
– ON 01/11/2016CATEGORIAS: BRASIL, COMPORTAMENTO, DESTAQUES, SOCIEDADE
Vive de aparências e acha isso chique. E se
tudo isso te parece apenas medíocre e inofensivo, não se engane: há garras e
dentes. Pois é nela que é feita a engorda do ódio. É ela que legitima
atrocidades
Por Maria
Bitarello
Há uns anos ouvi
um podcast de rádio americana, não me lembro mais qual, em que
o entrevistado daquele dia dizia que o fator determinante da pobreza –
econômica, não de espírito – é a possibilidade de escolha. O pobre, dizia o
entrevistado que também o era, muito mais do que carecer de coisas, pertences,
bens, é privado de escolhas, de alternativas. E, salvo as exceções que sempre
existem, a vida lhe impõe um caminho, muitas vezes sem bifurcações no percurso.
O que o dinheiro compra, portanto, segundo o tal entrevistado, são escolhas.
Fiquei pensando sobre isso muito tempo. Claro que se trata de uma dentre tantas
formas possíveis de interpretação e que, de certo, é limitada. Mas vamos seguir
nessa via, limitada que seja. Porque acho que ela traz insights.
De acordo com esse raciocínio de pobreza, por
menor que possa ser minha identificação com essa classe amorfa chamada de
média, de fato, é dela que eu vim. Eu cresci num lar de classe média. Tive
oportunidades de escolhas. Muitas. Como a de ter uma infância e crescer na hora
em que estava pronta pra crescer; a de estudar, o que e onde fazê-lo; as de
viajar, trabalhar, aprender línguas, música, esportes, conhecer culturas
diferentes, ser exposta à leitura, às artes; a de votar; a de não virar, cedo
demais, nem esposa nem mãe; a de me relacionar com quem meu coração eleger; a
de mudar de ideia, voltar atrás, andar pra frente, jogar tudo pro alto e
começar de novo; a de viver da forma que é verdadeira pra mim. E isso é ouro.
Alguns diriam que não tem preço, mas se isso fosse verdade, todos teriam um
pouquinho pra si. O que sabemos não ser o caso.
As escolhas às quais tive acesso não estão
disponíveis a todos e me foram concedidas, em grandíssima medida, devido à
classe social à qual pertenço. Eu as tive porque outra pessoa não as teve. É
uma lei básica e pervesa do capitalismo. Ao mesmo tempo, a classe média não é
só uma fatia social; é uma cultura também. E uma das características
constitutivas dessa classe cultural é o medo. A classe média é apavorada. Tem
medo de perder suas regalias disfarçadas de segurança e estabilidade. Ela
paralisa sua vida em função desse medo. Segrega. Empurra o diferente pra longe.
Vota mal. Não quer pretos nas escolas dos filhos brancos. Nem a boca no fim da
rua. Tem medo do flanelinha que cuida dos carros. Da puta. De sair do carro, de
andar na rua. Acha que a riqueza máxima será, um dia, se separar do convívio
com os pobres.
É uma cultura pobre de espírito. Chata. A ela
pertencem a moral e os bons costumes. Vive de aparências e acha isso chique. E
se tudo isso te parece apenas medíocre e inofensivo, não se engane: há garras e
dentes. Pois é nela, na classe média, que é feita a engorda do ódio. É ela que
legitima atrocidades. Movida pelo pavor, a classe média é capaz de qualquer
coisa pra manter erguidas as barras que a aprisionam dentro do apartamento,
enjaulada; dentro do carro, atrás de vidros blindados; dentro do bairro, onde
todos são iguais. A personagem infantil de Pessoas Sublimes, peça
que vi há umas semanas n’Os Satyros, em São Paulo, não sai de casa porque lá
fora é muito perigoso. E já viu o que faz um bicho em perigo, acuado? Ele
morde. Ele ataca.
Essa noção da classe média apavorada não é
minha; tomei-a emprestada do documentário A Opinião Pública, do
Arnaldo Jabor, lançado em 1967. Vale a pena assistir. Prometo que não tem nada
a ver com o Jabor da Globo. É um registro das mudanças sociais pelas quais o
Brasil passava na década de 1960. Uma época semelhante à de agora, quando um
momento de abertura foi nocauteado por uma tenebrosa onda conservadora. Esse
“medo” do qual fala Jabor nasce do que Marcia Tiburi chama de fetiche
do igual, outra expressão que tomo emprestada – dessa vez do último romance
dela, Uma fuga perfeita é sem volta, que estou acabando de ler. Os
adeptos desse fetiche “amam o igual porque, na vida, só o que querem ver é
espelho. O espelho que certifica que existem. Onde não há espelho, as pessoas
põem ódio”.
O ódio. A força de uma classe média apavorada
movida por ele, quando nas mãos da pessoa errada, pode ser monumental. A massa
de manobra em que se transforma pode varrer uma sociedade, pode matar. E uma
classe média assustada é tudo o que a direita mais aprecia e melhor sabe usar.
Ela vai instigar ainda mais esse ódio que vem do medo, que por sua vez vem da
não compreensão do diferente. Se a classe média brasileira não for sacudida de
seu torpor, temos exemplos históricos palpáveis que mostram para onde esse
discurso pode descambar. E a memória precisa ser exercitada, sempre, pra que a
história não se repita.
Evitar repetições é o que um paciente encontra
na análise. É o que se alcança com uma epifania. Com um momento de iluminação.
Perceber essas repetições e fazer o furo, não reproduzi-las mecanicamente,
liberta. Porque aí, sim, há escolha. E em tempos de uma classe média que tantas
panelas bateu nas janelas – a imagem própria do desespero –, não parece haver
escolha, mas mera reprodução. Por isso, em meio a essa embriaguez burguesa
(classista, racista, machista, fascista), será preciso muita riqueza de
espírito interior pra despertar do transe e exercitar a capacidade de
discernimento. Pra perceber as bifurcações no caminho, as opções de desvio que
existem, sempre.
Suspeito eu que a maneira de vê-las é olhar
pro outro, pro diferente e, ao mesmo tempo, pra dentro – sem medo. Porque, no
fundo, é a mesma coisa. Reconhecer o diferente é um ato íntimo. E só daí sairá
algo novo.
Parabens, amigo. Excelente artigo. Alem de agradecer sua visita ao meu blog Novo Exilio, peco autorizacao para replicar seu artigo la. Com as devidas mencoes, claro. Sempre havera espaco para pessoas q pensam um pais progressista. Bom saber que nao estou sozinho nessa trincheira.
ResponderExcluirAlexandre, obrigado pelas palavras de incentivo. Tem toda autorização para publicar o artigo. Para mim será grande honra. Saiba que estarei sempre nas trincheiras do progressismo. Abraço.
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