sexta-feira, 17 de março de 2017

Precisamos ouvir o Lenio Streck - Os presos da “lava jato”, os índios, o voyeurismo e a atriz global

O Jurista Lenio Streck tem se posicionado de maneira lúcida e contundente sobre a crise institucional que o Brasil atravessa. Na era da pós-verdade, onde convicções se sobrepõe à fatos, o jurista tem um raciocínio baseado em premissas sólidas, em argumentos em consonância com o ordenamento jurídico. Seus textos denunciam abusos, discricionariedades infundadas e o desmoronamento da Constituição Federal de 1988. É voz fundamental.  


SENSO INCOMUMOs presos da “lava jato”, os índios, o voyeurismo e a atriz global




Por Lenio Luiz Streck, no Consultor Jurídico
16 de março de 2017, 8h00

Subtese: “Voyerar” presos é o mesmo que fazer selfie em velório.
O colunista Mauricio Lima (revista Veja) conta — notícia não desmentida — que os atores Bruce Gomlevsky e Flávia Alessandra, que representam os delegados Marcio e Erika no filme sobre a “lava jato”, foram a Curitiba para filmar nas dependências da Polícia Federal. Feitas as tomadas — o local fora fechado para isso — o grupo da filmagem teve a “jenial” ideia de olhar alguns presos da “lava jato”. Foram levados pelos carcereiros a visitar as celas de Eduardo Cunha, Palocci etc., mas a maior atração querida pelos atores e membros da equipe de filmagem era Marcelo Odebrecht. Este, segundo a matéria, escondeu-se para não ser visto (ou filmado). Depois de alguns minutos, a atriz, à socapa e à sorrelfa (socapa e sorrelfa são por minha conta) conseguiu ver o troféu.
Incrível. Quer dizer, crível, porque em Pindorama tudo é possível. Os franceses faziam isso com nossos índios, certo? Os carcereiros da Polícia Federal, violando a privacidade dos presos, permitiram que os membros da equipe de filmagem vissem os “enjaulados”? Qual é o limite da humilhação? Vale tudo pela fama? Vale tudo para “mergulhar” no personagem?
No Rio de Janeiro, rasparam a cabeça de Eike Batista. Explicação da juíza: só raspamos as cabeças de presos homens porque as mulheres são mais asseadas (está escrito em uma decisão proposta pela Defensoria). E o que dizer dos episódios de Cabral e Garotinho?
E o que dizer, também, do tratamento dado aos presos “comuns”, não famosos? Humilhação cotidiana nas masmorras medievais (a expressão é do ex-presidente do Supremo Tribunal Federal). Vida nua, diz Agambem. Simbolicamente o “papel” desempenhado pela atriz representa o olhar da sociedade sobre os presos. A sociedade observa como experimento. Um zoo (des)humano. Um misto de exotismo e vingança. E as conduções coercitivas? Cultura do espetáculo.
O que está acontecendo com o país? Autoridades cada vez mais truculentas e autoritárias. Em um estado da federação, desembargador mandou prender um policial que perturbara seu filho (o filho do desembargador). No Rio de Janeiro, agente que, cumprindo seu dever, exigiu documentos de magistrado, foi condenada por dizer que “juiz não é Deus”, em resposta a uma atitude própria daquilo que Faoro tão bem chamou de “sociedade estamental”. Em São Paulo, advogado foi algemado por “entrar no elevador errado” no Tribunal Regional do Trabalho. No Rio de Janeiro, juíza concede mandado de busca e apreensão coletivo em favela.
Todos os dias advogados e partes testemunham coisas tipo-estamentais. Já escrevi aqui que advogar virou exercício de humilhação cotidiana. No plano do imaginário social, tudo isso está interligado. No fundo, “os carcereiros” de Curitiba se sentem “proprietários” dos presos. Assim como os atores da Globo pensam que podem fazer voyeurismo dos detentos. Uns pensam que podem exibi-los; outros, que podem “espiá-los” (vejam a ambiguidade do “espiar”). Como se estivessem à venda. Como no século XIX, Flávia Alessandra queria examinar os dentes do preso, para ver se podia comprá-lo e, quem sabe, chicoteá-lo. Afinal, “somos” os outros — olhamos de fora. Não somos parte disso. Eis o paradoxo: pior é somos…
Consciente ou inconscientemente, é disso que se trata. Construímos esse imaginário, no interior do qual “cada um tem de saber o seu lugar”, porque alguns “eleitos” determinam as condições de ocupação desse lócus. Não é de admirar que continuamos com elevadores privativos, elevadores sociais e de serviço, estacionamentos privativíssimos, verbas especiais para tudo que é tipo de cargos. Como um dia disse a filósofa contemporânea Carolina Ferraz, justificando a separação entre elevadores sociais e de serviço, “as coisas estão muito misturadas, confusas, na sociedade moderna; algumas coisas, da tradição, devem ser preservadas”. Bingo. E que tradição, não? Ou o que disse a “promoter” Daniela Diniz: cada um deve ter o seu espaço; não é uma questão de discriminação, mas de respeito”. Como se aprende coisas com essa gente, não? É quase como olhar a GloboNews, com os filósofos Birnbaum, Kabina, Ontaime and Wolff. Nota: Promoter, até pela pronúncia (diz-se “promôôuuter), deve ser algo chique. Fazem festas para a burguesia cheirosa de Pindorama, que só usa perfumes oxítonos.
Sigo. A propósito, conto um episódio que ouvi no Rio de Janeiro há mais de 20 anos. Uma senhora, negra, fora impedida, pelo síndico, de usar o elevador social do prédio, porque empregada doméstica. Seu patrão entrou em juízo contra isso. E foi vencedor. A empregada ganhou uma espécie de “salvo conduto” para usar o elevador social. Dia seguinte à vitória, a senhora, com uma sacola das Casas da Banha a tiracolo, “embarcou” no elevador de serviço, ao que foi inquirida pelo seu patrão acerca do fato. Afinal, ganhara “permissão” para usar o elevador social. Ela respondeu: “— Doutor, eu sei o meu lugar”. Pronto. No fundo, é isso que as elites brasileiras, forjadas no patrimonialismo, conseguiram fazer. Na primeira metade do século XVI, Ettienne de La Bottie já escrevia o seu Discurso sobre a servidão voluntária. Ali ele já tentava explicar, antes da própria modernidade e dos direitos e garantias de igualdade que só exsurgiram séculos depois, as razões do “eu sei o meu lugar”.
Por isso não surpreende que tanta gente, aqui mesmo na ConJur, tenha dado razão ao juiz que disse que o advogado deveria prestar concurso para juiz, como se a profissão de advogado fosse inferior à profissão de magistrado (consciente ou inconscientemente, é isso que está por trás do discurso).Não surpreende que tanta gente tenha justificado a ação dos guardas que algemaram o advogado no TRT-2. Não surpreende que, atualmente, parcela considerável dos advogados consiga entrar no fórum mesmo quando as portas estão trancadas: sem espinha dorsal, passam por debaixo da porta. Mas, no fundo, não os culpo. Seu imaginário foi forjado desse modo. Sabem “o seu lugar”.
Não surpreende, portanto, a atitude da atriz global e dos carcereiros da polícia. Não que os carcereiros (não sei se tinha delegado na comitiva) e a própria atriz sejam elites no sentido estrito ou até que tenham consciência do que fizeram. Ocorre que, no plano do imaginário, é exatamente a incorporação desse corpus de representações que faz com que pensemos “como se fossemos”. Não esqueçamos que, com a ideologia, as coisas se invertem: por vezes quem tem mais medo da reforma agrária é quem só tem terra debaixo da unha, se me entendem a crítica à alienação (que é quando “alieno-a-minha-ação”; por isso, uma pessoa alienada “ali-é-nada”, com a permissão de minha LEER) e pedindo perdão pelo estagiário não levantar placa alguma.
E, afinal, não esqueçamos também que todos moram(os) em Pindorama. Que, como disse Millôr, tem como futuro um imenso passado pela frente.
Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.
Revista Consultor Jurídico, 16 de março de 2017, 8h00

sexta-feira, 3 de março de 2017

SUS EM MOVIMENTO - UMA ANÁLISE CONTEXTUAL DA SAÚDE EM UBERLÂNDIA

SUS EM MOVIMENTO
UMA ANÁLISE CONTEXTUAL DA SAÚDE EM UBERLÂNDIA

Por Rogério Zeidan

Não pela mera exposição de ideias, mas sim pelos fatos – pois contra estes não há argumentos, é importante lembrar que em 2013, foi cravado na história de Uberlândia a inauguração do Modelo Público de Gestão em Saúde. Isso se deu no contexto da prejudicial privatização/terceirização da saúde pública que perdurou por quase 20 (vinte) anos em nosso Município.
Com uma Administração 100% privatizada em todos os níveis de atenção à saúde (UAIs, Hospital Municipal, Atenção Básica, Atenção Especializada e Hospital de Clínicas da UFU), o coronelismo neoliberal da privatização chegou ao seu ápice: rede de saúde municipal despadronizada, precarizada, noticiada pelos jornais entre as piores do País. E, após o repasse de mais de 1 bilhão de reais à Fundação Maçônica Manoel dos Santos, sem qualquer controle do Município (Prefeitura e Câmara) e de órgãos de controle externo (Ministério Público), a decisão judicial proferida em 13 de novembro de 2012, nos autos da Ação Civil Pública pr. n° 2004.38.03.004938-3, pelo juízo da 1ª Vara Federal da Subseção Judiciária de Uberlândia, declarou A NULIDADE DE TODOS OS CONTRATOS firmados entre o Município e a privada entidade maçônica, que geriu a saúde por quase 20 (vinte) anos, sem processo licitatório e com a contratação de empregados remunerados com recursos do SUS, sem qualquer concurso público.
Diferente não ocorreu, como não ocorre, sobre um dos pontos de atenção mais importantes de Uberlândia e Região: O HC/UFU. Esse também é o locus do desmando. Historicamente sua administração é forjada por fundação 100% privada, pelo poder oligárquico de Uberlândia, em que por trás também está a maçonaria. Os graves vícios na estrutura administrativa que se confunde entre fundação e universidade, patrimônio, controle de produção e gastos públicos, são igualmente a tônica de perverso sistema neoliberal privatista que historicamente se espraia no município.
Indisfarçavelmente, assim como o crime organizado conta com a infiltração de criminosos nas mais diversas estruturas de poder, a Oligarquia Uberlandense conta também com militantes nas mais diversas esferas institucionais. Todos ávidos para a manutenção do sistema neoliberal privatista. Mas isso beneficia a quem? Teríamos mesmo no setor privado fundações e associações enquanto entidades altruístas de cunho religioso ou científico desprovidos da finalidade de lucro?
De fato, não experimentamos a democracia em nossos tempos. conselhos universitários, conselhos de graduação, conselhos municipais e movimentos sociais, dentre quaisquer outras formas de estrutura popular de participação não tem voz. Aliás, custam ser tolerados. Se o tráfico de influência e a condescendência criminosa antes de qualquer coisa, prevalece a Oligarquia, então temos mesmo o claro sinal de que “O Coronel” está acima da lei.
Hoje temos a volta das mazelas da privatização, mas não a morte do modelo público e democrático de gestão na saúde e em outras pastas. Modelo este que é dever constitucional e direito de cada cidadão.
Rogério Zeidan é:

Associado Fundador e Presidente do Instituto PACHUKANIS de Estudos Sociais Aplicados. Graduado em Direito pela Universidade de Mogi das Cruzes e Mestre em Direito Público pela Universidade de Franca (2001), pesquisador stricto sensu em Direito Penal pela Universidade de Fribourg (Suiça). É Advogado Membro da Comissão de Estudos Penais e Processuais penais da OAB/MG - Subseção de Uberlândia-MG e da Comissão de Direitos Humanos. Membro do Conselho Municipal de Segurança Pública de Uberlândia, pelo Ordem dos Advogados do Brasil 13ª Subseção. Como Educador, integra o Grupo de Pesquisa sobre Ensino Jurídico da Universidade de São Carlos - UFSCar. É Professor de direito penal e em Fundamentos do Direito, de pós graduação nas Regiões do Triângulo Mineiro e Vale do Alto do Paranaíba, da Faculdade Pitágoras S/A e da PUC/Minas. Autor da Editora SARAIVA com a obra: Direito Penal Contemporâneo: fundamentos críticos das ciências penais e outros projetos em andamento. Autor do livro: Ius puniendi, Estado e direitos fundamentais: aspectos de legitimidade e limites da potestade punitiva, pela Editora SAFE de Porto Alegre e autor de vários artigos científicos. Professor de Direito Penal convidado aos Laboratórios do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - IBCcrim. Assessor Municipal de Saúde, Membro da Comissão Técnica de Saúde da Secretaria Municipal, da Comissão de Avaliação e Fiscalização de Contratos de Gestão da Secretaria Municipal de Saúde de e da Comissão Permanente de Fiscalização de Subvenções, nos termos do Decreto Municipal nº 13.924/2013 e Coordenador da Assessoria Jurídica do Gabinete da Secretaria Municipal de Saúde do Município de Uberlândia. Membro e Conselheiro do Instituto Luiz Gama.