Emsite RS Urgente, o jornalista Ayrton Centeno aborda o incidente que envolveu o ex-ministro Ciro Gomes e um grupo de manifestantes, na madrugada da quinta-feira (17), em frente ao apartamento do político. Para o jornalista, “Ao desabafar com grupo que o vaiava, diante de sua casa, Ciro Gomes tinha razão: no Brasil, autoritarismo volta-se com frequência contra aqueles que o defendem”. Confira:
– Eu estou protegendo você, seu
filho da puta!
Dita no calor da hora, a frase
dura de um possesso Ciro Gomes carrega um desaforo dos mais evidentes,
tradicionais e utilizados para aquele momento em que a temperatura sobe e a
cusparada retórica se projeta com sua missão de destratar. Era madrugada do dia
17 e um grupelho de jovens ululantes e disfuncionais fazia barulho diante da
casa do ex-governador e ex-ministro de Itamar e Lula.
– Eu estou protegendo você, seu
filho da puta!
Mas, no caso, o mais importante
não é o insulto saído da boca de um político notório pelo temperamento
explosivo. Junto, traz um ensinamento sábio. Com sua validade confirmada pela
história recente.
– Eu estou protegendo você, seu
filho da puta!
A última vez que tal conselho
deixou de ser ouvido custou 21 anos de ditadura ao Brasil.
– Eu estou protegendo você, seu
filho da puta!
Em 1964, no momento em que
articulava o golpe contra Jango, o arquiconspirador Carlos Lacerda
desconsiderou a possibilidade de reversão do que urdia. Embora sagaz, não
imaginou que a usurpação de um presidente eleito, que parecia abrir-lhe o
caminho para a presidência, viesse a ser, como foi, o começo do fim de suas
próprias ambições presidenciais. Aos 50 anos, vivia o auge de sua carreira. Foi
preso e cassado pelos novos inquilinos do poder que ajudou a implantar.
Morreria em 1977 sem recuperar seus direitos políticos. Provavelmente
lamentaria não ter sido admoestado – antes da vitória que se transformaria em
derrocada – por um adversário mais atrevido que lhe dissesse nas fuças:
– Eu estou protegendo você, seu
filho da puta!
Outro conspirador, Adhemar de
Barros, também não ouviu a voz da razão. Ele e a mulher, Leonor, puxaram a
edição paulista da Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Também sonhava
com o Planalto ao qual já fora duas vezes candidato. Seu problema era
semelhante aos dos demais conjurados: falta de voto. Quando veio o golpe que
pediu, Adhemar avisou: “Agora, caçaremos os comunistas por todos os lados do
país”. Dono de cadeia de rádios e jornais que hoje compõem a Rede Bandeirantes,
Adhemar levou uma rasteira do destino: foi caçado e cassado. A exemplo de
Lacerda, morreu sem recuperar os direitos políticos.
– Eu estou protegendo você, seu
filho da puta!
O mesmo aconteceu com parcela
dos jornais embarcados na conspirata, caso do Correio da Manhã, o mais
destemperado dos inimigos de Jango, que feneceu destroçado pela censura e a
perseguição dos militares. Claro que isso não se aplica às Organizações Globo,
que somente se viabilizaram como um dos maiores impérios de comunicação do
mundo através de suas relações carnais com um governo de assassinos. Sem
vacilar diante da mentira, quando o poder constitucional foi derrubado, O Globo
proclamou na sua manchete de capa em 2 de abril de 1964: “Ressurge a
democracia”. Para o Globo, a democracia golpeada era a ditadura, enquanto a
ditadura que chegava era a democracia.
– Eu estou protegendo você, seu
filho da puta!
Quando o golpe deu seus
primeiros vagidos, a Ordem dos Advogados do Brasil, através de seu conselho
federal, correu a embalar aquele sinistro berço de renda negra. Enalteceu “os
homens responsáveis desta terra” que baniram “o mal das conjuras
comuno-sindicalistas”. E, paradoxalmente, o estupro se dera “sob a égide
intocável do Estado do Direito”. Sob a mesma égide e de tal estado, em 27 de
agosto de 1980, uma carta-bomba na sede da Ordem matou a secretária Lyda
Monteiro da Silva, de 59 anos. A carta era dirigida ao presidente do conselho
federal da Ordem, Eduardo Seabra Fagundes. Ocorre que, após apoiar a implosão
da Constituição, a OAB percebera seu erro. E mudara.
– Eu estou protegendo você, seu
filho da puta!
O Supremo, para vergonha dos
pósteros, agiu igual. Sob o pitoresco olhar do STF, tudo estava em seu lugar: o
golpe era legítimo, a democracia estava preservada e a constituição idem. Seu
presidente, Álvaro Moutinho da Costa, saudou o general Castello Branco em
visita à corte. Porém, após o AI-5, três ministros, os mais independentes,
foram aposentados compulsoriamente.
– Eu estou protegendo você, seu
filho da puta!
Filha de coronel do Exército, a
adolescente Sônia Moraes foi levada pelo pai e a mãe à versão carioca da marcha
da família com deus pela liberdade. Era 1964 e os Moraes festejavam a queda do
governo constitucional. O tempo passou, o regime mostrou seus dentes e Sônia
desapareceu. Engajara-se na luta armada contra a ditadura. Presa, teve os seios
arrancados e foi chacinada até a morte. Desesperado, o pai procuraria durante
anos pela filha. Um dia recebeu um presente sem sentido, enviado pelo seu
desafeto, o general Adyr Fiúza de Castro, comandante do DOI-Codi, no Rio. Era
um cassetete da Polícia do Exército. Descobriria depois que aquilo representava
uma advertência e um escárnio. Com aquele cassetete sua filha, Sônia Maria de
Moraes Angel Jones, fora estuprada antes de morrer em suplicio.
– Eu estou protegendo você, seu
filho da puta!
Talvez da explosão de Ciro fique
mais o destempero do que o aviso. Mas é este que conta e tudo resume. Não é o
mandato de Dilma que está em jogo. Quando a comandante suprema das forças
armadas é grampeada, o recado é sucinto: ninguém está livre, hoje foi ela,
amanhã serão vocês. Por isso, a violência ilegal, absurda e flagrante que se
abate sobre a atual e o ex-presidente é apenas uma fachada. Atrás dela vem o
estado de exceção. Quando diz ao aprendiz de fascista “Eu estou protegendo
você, seu filho da puta!”, Ciro expressa o que acontece após a ruptura do
Estado Democrático de Direito quando até o guarda da esquina sente-se investido
de superpoderes.
Como imensos contingentes da
militância golpista limitam seu vocabulário a meia dúzia de chavões e não sabem
bem o que estão fazendo ali e a História mostra que o que está acontecendo é
somente um revival dos tempos de 1954 e de 1964, e tem muito a lhes ensinar,
talvez a melhor resposta ao rancor não seja a de Ciro mas a do ministro Jaques
Wagner. Aborrecido num restaurante com o glossário golpista de um cidadão que o
importunava, reagiu de maneira sintética: “Vá estudar!” Estudo é uma arma de
exterminar fascistas. E ainda poderemos dizer a quem seguir a sugestão:
“Estamos protegendo você”.
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