segunda-feira, 9 de maio de 2016

UM DIÁLOGO COM JOÃO GUIMARÃES ROSA

 João Guimarães Rosa - entrevistado por Fernando Camacho


UM DIÁLOGO COM JOÃO GUIMARÃES ROSA

Publicado originalmente no excelente: Templo Cultural Delfos

João Guimarães Rosa - foto: Acervo JGR/USP
Depois de uma longa e incansável busca por esta entrevista, que perdurou por mais de 4 anos, finalmente conseguimos uma cópia. Devemos isso ao professor(UnB) escritor e pesquisador Gustavo de Castro e aos pesquisadores da USP Pedro Marques e Frederico Camargo que gentilmente nos enviaram uma cópia digitalizada, assim a transcrevemos para socializar com os nossos leitores e pesquisadores. Essa é uma das raras entrevistas concedidas por João Guimarães Rosa inédita no Brasil (conhecida apenas por pesquisadores do autor), foi originalmente publicada na revista Humboldt (Munique) em 1978, 11 anos após ela ter sido concedida ao professor e jornalista Fernando Camacho em abril de 1966. É provável que seja a última entrevista do escritor. (Entrevista com João Guimarães Rosa". Revista Humboldt, nº 18 (37), p. 42-53. Munique, 1978).

Para outras três entrevistas do autor publicadas neste site, links no final da página. 

Temos ainda uma outra entrevista conhecida de João Guimarães Rosa concedida para uma TV Alemã em 1962, ao crítico literário Walter Höllerer, um raríssimo registro de uma imagem em movimento do escritor. Essa entrevista está no documentário "Outro Sertão", de Adriana Jacobsen e Soraia Vilela (2013 - 73'), infelizmente não liberada para divulgação na rede.

Chamaremos essa entrevista de "Um diálogo com João Guimarães Rosa" já que ela é uma transcrição sem edição e com longas falas do entrevistador. Um documento importante que aborda questões relacionados a criação e as traduções de sua obra.

Editoras TCD


FERNANDO CAMACHO - UM DIÁLOGO COM JOÃO GUIMARÃES ROSA
Fernando Camacho - entrevista com João Guimarães Rosa
Rio de Janeiro, Abril de 1966

Esta entrevista foi gravada em princípios de abril de 1966 e teve lugar no gabinete de Guimarães Rosa, na Secretaria de Estado das Relações Exteriores, antigo palácio do Itamaraty do Rio de Janeiro. Estava eu de férias da Universidade de Zurique e na minha primeira visita ao Brasil, trabalhando então para a revista Humboldt como tradutor e redator. A entrevista destinava-se, sobretudo mas não exclusivamente, a ser publicada na Humboldt e é ao seu diretor, Professor Alberth Theile, que agora dedico como homenagem à magnifica obra de intercâmbio cultural que vem realizando há tanto tempo e com tanta persistência entre os países de língua portuguesa e alemã. Para que a entrevista tivesse uma divulgação ampla combinei uma versão alemã mais resumida para o semanário WELTWOCHE, onde eu então escrevia sob o pseudônimo de Rui Correia, e uma edição brasileira ficou também assente com o jornal do Brasil sendo anunciada noutra entrevista que concedi a este diário carioca em 10 de abril de 1966.
Não se publicou a entrevista porque dois meses após o meu regresso do Brasil minha vida deu uma reviravolta. Deixei Zurique, a Universidade, a Humboldt, e assumi novo posto de ensino na Inglaterra. Antes de partir ainda quis publicar a entrevista mais isso foi contrariado por uma série de contratempos. A qualidade da gravação era muito má e o amigo que me fizera o favor de transcrever as fitas, sendo de nacionalidade portuguesa, aluzitanara o texto sempre que este era pouco claro ou mesmo inaudível. Além disso ele deixara certas passagens para eu conferir, omitindo por exemplo nomes estrangeiros e topônimos brasileiros. Ao ler a transcrição tornou-se-me logo evidente que teria de "descorrigir" novamente o texto porque não fazia sentido que de vez em quando Guimarães Rosa falasse comigo construções lusitanas. A entrevista sairá também muita longa demais para as publicações que eu tinha em vista e desgostava-me particularmente a extensão das minhas próprias intervenções, que eu teria de resumir porque afinal eram as opiniões de Guimarães Rosa que interessavam e não as minhas.
Cenário: Um gabinete muito amplo e cômodo no Palácio do Itamaraty, Rio de Janeiro. Data: Princípios de abril de 1966. Participantes no diálogo: João Guimarães Rosa (GR), e o entrevistado; e Fernando Camacho (FC), o entrevistador.
Aliás eu tinha prometido ao autor que condensaria e estilizaria a entrevista para que tivesse mais peso e valor. Tudo isto era para ser feito na Inglaterra mas a verdade é que fui absorvido por tarefas rotineiras a que não podia escapar e no curto prazo de seis meses não só tive que viajar semanalmente para Zurique mas tive que mudar de casa cinco vezes (!). Mais tarde procurei a entrevista por toda parte sem a encontra. Quando da morte do grande escritor de Cordisburgo renovei a busca mas também em vão. Agora, onze anos mais tarde, vim encontrá-la no fundo de um caixote que eu arrumara a um canto da garagem juntamente com duas fotografias do autor, uma das quais em que estamos conversando um com o outro. Achei também uma ou outra curiosidade, como seja a fotocópia (!) de uma carta que me escreveu em 15 de marços de 1964, o original tendo sido enviado à editora que planejava a publicação de uma antologia do conto brasileiro, e também uns apontamentos escritos por ele e por mim em papel da Secretaria de Estado das Relações Exteriores, modelo R.J. 49 A. 
Ao deparar com a entrevista tornou-se-me óbvio que tinha ali um documento de grande valor histórico. Guimarães Rosa fala do seu processo de criação literária, discute as traduções da sua obra, dá indicações quanto à maneira como devemos interpretar o seu vocabulário, revela-nos aspectos íntimos da sua alma. Deste modo, em vez de condensar este documento, achei melhor reproduzi-lo na íntegra tal qual o recebi do transcrito, deixando-o assim com um outro portuguesismo que de resto não afetam a substância da entrevista. Para terminar gostaria de acrescentar ainda uma palavra sobre a personalidade complexa de Guimarães Rosa. Uma pessoa que nos desconhecia a ambos disse-me que Rosa era extremamente egoísta, incapaz de ajudar a ninguém... Talvez, mas mesmo assim apoiou e recomendou a minha primeira viagem ao Brasil e concedeu-me esta entrevista, embora pensasse que era uma perda de tempo, que nada resolveria, que por uma questão de princípio, não dava entrevistas, acedendo em concedê-la apenas porque ela me auxiliaria a mim...
Fernando Camacho


João Guimarães Rosa,  por Felipe Stefani (desenho de 2016)
Camacho: A meu ver a entrevista poderia começar por abordar dois temas: o processo de criação artística e o valor das traduções. Isto para termos assuntos com que começar mas depois poderíamos ver como a coisa ia. Conviria mesmo deixar que os assuntos se desenvolvessem a si próprios e tomassem o seu próprio rumo. O que é que você acha, ó Guimarães Rosa?

Guimarães Rosa: Camacho... você desculpe... você tem muito mais lhaneza do que eu. Eu aliás não tenho nenhuma. Deixo isso a seu critério.... mas às vezes o ignorante tem uma intuição e eu acho que conviria um tema palpitante, do momento, uma coisa que interessasse a todos, ou então...
(Nota do transcritor: Inaudível, confusão de vozes, uma terceira voz pedindo desculpa pela interrupção, gavador eventualmente desligado.)

GR: Desculpe, Camacho...

FC: Muito delicadamente você discordou da mina escolha de temas, queria temas mais palpitantes, mais interessantes. Mas olhe que eu não pretendia tratar o fenômeno da criação artística e da tradução literária em abstrato. Queria referi-los especificamente à sua obra. Há tanta gente que presume saber destes assuntos e que não tem ou tem pouca experiência direta destas coisas que seria interessante ouvir um grande escritor falar do seu próprio processo de criação artística e, como você tem um conhecimento tão profundo de outras línguas ninguém melhor do que você poderá falar do valor e utilidade das traduções, por exemplo da sua própria obra. Aliás tratamos destes assuntos na nossa última conversa e temos ali muitos elementos interessantíssimos que poderiam ser aproveitados para a entrevista... 
(Nota do transcritor: - Nova confusão de vozes. Pelo menos outras duas vozes. Ininteligível.
                               - Guimarães Rosa deu ordens para não voltarmos a ser interrompidos) 

GR: Bem, comece então com as perguntas mas olhe bem para mim que eu quero ver seus olhos quando me fizer as perguntas. Vamos tornar (isto) o mais vivo (possível)[1].
Você me conhece de tão longa data não é? Já desde 1962 que somos amigos. Viajamos juntos, fomos ver hotéis, fomos buscar minha mulher no aeroporto, se lembra?[2]

FC: Lembro...

GR: Hein?

FC: Lembro-me muito bem dos nossos encontros e aliás gostaria de aproveitar um dos temas da conversa que tivemos no nosso hotel de Berlim a respeito de dois contos seus[3]. Os dois contos, você lembra-se (?) foram a "A terceira margem do rio" e "O espelho". Você recorda-se?

GR: Perfeitamente. Você não gostou muito de "O espelho".:.

FC: A princípio não compreendi mas depois da nossa conversa voltei a ler e fiquei encantado... verdadeira obra prima. Mas deixe-me ver se consigo dar forma e sequência à nossa entrevista. Na conversa que tivemos em Berlim discutimos a natureza da intuição artística e também a razão de ser do fenômeno de criação artística. Você lembra-se que eu argumentei que o artista criava numa tentativa de superar a barreira da morte. Ele tentava fixar na sua obra algo fundamental do seu ser e da sua vida de modo a que as suas idéias, as suas fantasias, os seus sonhos e as aventuras do seu espírito voltem a repetir-se na alma dos outros. Aliás lembra-me a este respeito uma crônica do Rubem[4] em que ele pede aos amigos para celebrarem a sua morte indo tomar uns drinks e comer uns mariscos a determinado bar. Não sei se me compreende mas deste modo os amigos do Rubem viveriam por ele, fariam o que ele gostaria de fazer e não pode fazer. De qualquer maneira, voltando ao assunto, você como autor afeta a alma dos seus leitores que passam a reviver as experiências que você próprio sentiu. Por isso os leitores quase que terão o direito de saber alguma coisa de sincero e íntimo sobre o processo de criação artística que lhes afeta a alma. Você não se importaria de falar deste processo e das diferentes fases da sua criação?

GR: ???

FC: Está bem, eu vou ser menos abstrato. Você descreveu-me a intuição forte e deslumbrante que deu azo à criação da "A terceira margem". Há portanto uma fase de inspiração na sua obra que precede uma fase a que poderíamos chamar chamar provisoriamente de execução. Todavia uma obra tão rica e profunda como a sua sugere ter sido feita - e aqui peço a você que me desminta se não for esse o caso - como as grandes sinfonias que tem de ser trabalhadas e retrabalhadas...

GR: ... terrivelmente...

FC: Terrivelmente?

GR: Sim, tremendamente.

FC: Poderia explicar?

GR: Sim... Posso mostrar... já mostrei a duas ou três pessoas de bom gosto, sinceras, uma obra em laboração. Elas deliram. Acha que é a melhor coisa que já fiz até hoje. Mas aquilo não corresponde para mim, aquilo que eu pressenti, aquilo que eu quero fazer de maneira a ficar uníssono com o assunto, com o tema, com a inspiração...

FC: Sim, sim...

GR: Então é que eu vou desmanchar tudo e vou refazer... Quer dizer, o negócio é o seguinte: Você pegou muito bem há bocado, pode-se falar em duas fases. A inspiração vem, é brilhante, é gostoso experimentá-la, é viva em geral. É uma delícia pensar, viver. É a única parte realmente agradável.

FC: Por exclusão poderíamos inferir que a segunda fase é desagradável?

GR: A segunda fase é a parte da procura, do trabalho, da luta, da gestação que tem de seguir os seus (trâmites). É um processo demorado. Como é que eu diria? Eu misturo-me como o assunto, eu estico, eu aperto, reduzo, depois dilato, eu ponho o assunto dentro de mim, depois ponho fora de mim, depois eu entro dentro do assunto. Você compreende, Camacho?
FC: Perfeitamente. Você descreve um processo de procura e desenvolvimento constante, de ajustamento empírico, a luta pela forma.

GR: Sim. E vou tentando e vou fazendo, desmanchando, refazendo, pensando. A parte já escrita eu vou sempre tacteando. Nunca eu acho que tenho a inspiração completa, de saída, espontaneamente. Quando eu escrevo é como se eu quisesse pegar uma coisa que já existe. E não posso trair essa coisa. A criação da minha obra é uma tradução de uma coisa que eu não vejo[5]. Há uma fidelidade a essa coisa que eu não sei qual é, mas sinto que tenho de guardar aquilo, de respeitar. De maneira que eu tenho de trabalhar aquilo que pressinto e sinto e o texto me vai inspirando. Você compreende?

FC: Sim mas há uma parte que você poderia esclarecer ainda melhor. Você diz que o texto escrito o ia inspirando. Explique então a importância do texto já escrito neste processo progressivo, dialético em que o artista vai da inspiração para o texto e do texto para a inspiração...

GR: A importância não poderia ser maior, Camacho. O texto é uma coisa objetiva. Vai ficando registro e pronto de apoio a (para?) todo o processo subjetivo. Pouco a pouco vou descobrindo que às vezes faço uma afirmação mas depois eu a nego. Aquilo não era o que eu deveria dizer, era o contrário. Mas o texto, esse, a parte já pronta, vai mostrando os erros da obra e também me vai guiando no meu caminho. Você compreende?

FC: Está bastante claro. O texto em laboração mesmo que não tenha ainda forma definitiva serve de registro daquilo que você tenha apurado da inspiração e serve também de apoio para que você se eleve ainda mais alto e consiga extrair ainda mais da inspiração. Entretanto a obra cresce, forma-se...

GR: A obra se transforma. E, ao mesmo tempo, eu preciso que cada vez isto, esta coisa que se está formando, seja cada vez mais objetivo, mais impessoal, mais separado e mais independente do meu subjetivo superficial. Está compreendendo?

FC: Parece-me que sim. Você há pouco falou em fidelidade a uma coisa que essa como se já existisse. O processo artístico é para você como que uma descoberta dessa coisa que para si já existe. Talvez essa descoberta obedeça às suas próprias leis e se processe pelos seus próprios caminhos para que essa coisa que se procura seja revelada. Enfim quando você fala em querer a obra se torne independente de você reconhece que a obra artística tem de ganhar autonomia e se tornar um ser separado, com existência própria. E quando o trabalho de criação de criação termina e você encara essa coisa a que deu vida?

GR: Quando a obra está pronta é uma coisa que me assusta porque quando eu escrevo uma peça de que o mundo gosta muito como a "Terceira margem" mais bonita, aquela que foi publicada no jornal "O Globo", todo o mundo me vem falar. Eu fico assustado com o que leio: mas eu não sou capaz de fazer isto! Os elogios até me deprimem. Quer dizer, em penso: e não sei como foi que aquilo ficou assim, eu não tenho a receita, não tenho a receita, não posso repetir isso. É como um cozinheiro que fosse botando coisa na panela sem tomar nota. Você compreende?[6]

FC: Sim, sim... a obra consegue algo de transcendente que parece exceder as suas capacidades de artista e que o surpreende...

GR: Sabe mesmo depois de certas coisas publicadas elas têem qualquer coisa que eu próprio não esgoto num (abarco) completamente. Elas tomam aquilo a que eu próprio chamo de "música", a obra toma a sua própria música. Você compreendeu?

FC: Parece-me que sim. Gosto muito da sua expressão "música". E chamo a isso o "tempo interior" da obra, a pulsação característica da vida dessa obra, o ritmo bem... bem particular da autonomia que distingue essa obra das outras obras. A posse dessa coisa a que você chama "música" e que o autor transmite à obra é uma coisa muito enigmática. Pelo que você disse há pouco poderíamos deduzir que a sua própria obra lhe causa estranheza e até que você não gosta dela, não a aprecia...

GR: Nada (disso) ... Eu aprecio minhas coisas como se elas não fossem minhas. Às vezes eu pego uma coisa minha e digo "está bom, está bom" como sendo de outro autor. Eu gosto até de elogiá-las porque aquilo não sou eu. Houve tanto caminho, tanta mistura, tanta duração que eu depois sinto a coisa como se não tivesse ligação direta comigo. Eu descubro coisas a meu respeito depois lendo calmamente o que eu escrevi... aprendo coisas a meu respeito me lendo. Você (sabe disso) Camacho?

FC: Isso é muito curioso. Eu próprio ao ler a sua obra descubro e aprendo muitas coisa a meu próprio respeito, mas eu não sou o autor. Aliás devo acrescentar que isso me sucede sempre que leio autores verdadeiramente grandes. Talvez isto aconteça porque o autor consegue... consegue inconscientemente, mesmo sem o saber, ir para além do seu próprio subjetivismo do modo a objetividade da obra, a sua independência...

GR: E que eu quero levar ao máximo e cada vez mais...

FC: E agora uma pergunta que não sei bem se faz sentido porque compara obras de natureza diferente, as suas primeiras obras e o último livro que escreveu. O processo de purificação a que você se referiu, de cristalização, de procura da forma adequada, de... o processo de feitura parece ser muito menos elaborado, muito mais imediado, talvez até mais ingênuo, psicológica e artisticamente, em Sagarana. Por exemplo no conto "Duelo"... (Mas não quero que julgue que não gosto de Sagarana, ou do Grande Sertão. Eu gosto, adoro sinceramente tudo o que você escreveu. A história de Miguilim é da maior beleza... que pureza, doçura, inspiração pura... Sou comovido com Manuelzão, por Diadorim... Aliás eu uso sempre os seus primeiros trabalhos, que são muito mais fáceis de ler, como introdução às suas duas últimas obras, em especial como introdução às "Primeiras Estórias", que tratando-se de contos de pequena extensão, são mais apropriados ao estudo e análise em classe...)
Mas vamos lá ver se eu consigo fazer a pergunta que queria fazer... sem desprezar os seus primeiros trabalhos parece-me que a sua obra... ganhou profundidade psicológica, em maturidade e enriquecimento artístico. Por exemplo, eu considero Sagarana um trabalho de grande talento e de grande inspiração mas as Primeiras Estórias são para mim um trabalho mais definitivo, verdadeira obra universal, obra de arte e de profunda perspectiva humana. Você poderia explicar as diferenças entre estes seus trabalhos?

GR: Bom, Sagarana foi concebido em uma época em que eu era mais extrovertido. Eu era mais moço, foi escrito em 1937. As Primeiras Estórias foram escritas em 1960, 1961, 62... vinte e quatro anos depois. Já há aqui uma diferença você compreendeu?
Em Sagarana eu era moço, voltado para fora. Tinha vindo de Minas e tinha saudades de Minas, extrovertia-me e paradoxalmente minha obra era uma recuperação de um interior perdido lá de Minas. Quando eu morava nesse interior lá de Minas não pensava em escrever nem tomar notas. Eu queria ir para o estrangeiro, queria viajar. Depois fiz concurso, vim para o Itamaraty, e quando cheguei aqui vi que estava segurada esta parte. Então a saudade de lá me puxou e escrevi Sagarana que é um livro que é voltado para o ambiente dessa coisa de lá, de Minas, de saudade, não é?

FC: E as Primeiras Estórias?

GR: É um livro escrito depois de eu ter sofrido muito. Estive doente, passei um ano sem escrever, compreende? Eu tinha já uma outra maturação, a maturidade do sofrimento. Já estava realizado, já não tinha interesse em viajar. Eu estava voltado para dentro de mim mesmo, me tornara num instante (?), um contemplativo, um ser religioso, vivendo a vida assim em um lugar alto, uma coisa além do real, com mais valor... Compreende? O livro é uma depuração, correspondente à procura de um ideal, consigo (?) próprio... Esse ideal, essa procura, dentro de si próprio, aliás permite-me às vezes um contato com qualquer coisa de (intrínseco e genuíno) e comum a todos os homens. Paradoxalmente o contato com os outros raramente se consegue quando se é extrovertido. Eu vou dar um exemplo: o grande ator representa para si, não para o público. O público não existe, está entre parênteses, está num mundo fechado, à parte. Do mesmo modo o autor se vai realizando e se vai projetando na sua estória imaginária e então ele tem que ser perfeito dentro daquele mundo. Para si próprio, compreendeu, Camacho?

FC: Isso é muito curioso, muito interessante. Quer dizer, o palco, a plateia, o público não tem verdadeiramente importância ou pelo menos a sua importância é secundária, indireta, o público é quase um pretexto para o autor. O que interessa é a realização do... da interioridade do autor através da sua obra de modo a que esta interioridade se torna um círculo perfeito, um circulo mágico em que o homem artista vive em intensidade e plenitude para além do próprio tempo. Eu acho isso muito interessante. Vou aproveitar para a minha teoria da criação e da tradução literária. Então o público não é importante para o seu processo de criação artística, é então desnecessário?

GR: Em relação ao público eu diria o seguinte, sabe? Quando eu escrevi Sagarana a minha preocupação com o público era indireta. Não é imediata, não é a primeira coisa, às vezes a consciência de haver um público afeta desfavoravelmente, impede, restringe o processo... O meu desejo de comunicar com o público era mais para mostrar o cenário da minha infância, para recuperar e preservar esse mundo sob forma artística. Era esse mundo que era importante... Uma coisa fora do comum, não é? O regresso às raízes, os germes, o embrião que nos deu ser. Há um tudo isto uma preocupação religiosa, metafísica, o moralismo, uma certa tônica afirmativa do individuo... Este não tem decadência, não tem entrega, possuem a técnica dos que sofrem de malária, eles reagem... Não é a literatura de José Lins do Rêgo, dos que se entregam, dos que são vencidos na literatura regional. Não, não são nunca vencidos...

FC: Os seus personagens tem por vezes uma combatividade demoníaca, por exemplo, o Cassiano do seu conto Duelo, uma extraordinária força vital, uma vontade de viver, sobreviver, perdurar, o caso de Turíbio Todo...
GR: Isso, o individuo reage, ele supera os obstáculos, afirma-se, mas no fundo Sagarana era para mostrar Minas às pessoas. Uma mistura: mostrar Minas e mostrar também como eu via o mundo. 

FC: Mas... uma finalidade tal.. Isso era um objetivo consciente? A obra fica então ao serviço do público, subordinada ao público?

GR: Subconscientemente, estou vendo as coisas em retrospectiva, tentando ver diferenças entre...

FC: Ah, está bem. E então a finalidade ou objetivo das Primeiras Estórias...

GR: É para mostrar a minha ideia de mundo e do homem...

FC: A diferença não está bem clara. Quando você fala em mostrar a sua ideia de mundo refere-se ao seu mundo interior. Portanto há uma maior interioridade revelada nas Primeiras Estórias?

GR: Sim

FC: Estes contos são portanto mais universais?

GR: Não necessariamente em realização mas sim nas intenções que os (norteiam?)[7], na direção...

FC: A coisa está um pouco complicada e eu tenho de no assunto com mais calma... As intenções, você disse, eram subconscientes, uma vez que (almejam) a interioridade, aquela interioridade onde alcançam algo de objetivo que é comum a todos nós, eles tornam-se mais universais. Parece-me que compreendo. Pois em, o cenário destas primeiras estórias é no entanto muito regional, identificável, concreto. Como reconciliar ou explicar isto?

GR: ???

FC: Eu estava a referir à nossa última conversa. Concordamos que em arte o concreto é a base necessária para que se manifeste o transcendente, que o real serve de apoio para o ideal, que o individual é o porta-voz do universal. Portanto o regional não exclui, é dual é o porta-voz do universal. Portanto o regional não excluir, é mesmo a condição necessária para o universal. É precisamente porque as suas personagens surgem e se identificam com a terra, Minas Gerais, que as sentimos bem humanas, universais... Falamos também da dimensão simbólica da arte, dos seus contos em particular que transcendem o que contam. Por exemplo, nós vivemos que a viagem do menino da primeira estória é uma viagem bem concreta, um viagem de avião, entre duas localidades bem específicas. No entanto é também uma viagem simbólica, representando a evolução do menino, da sua vida. A propósito, dizem-me que é a primeira ficção, em livro, da paisagem de Brasília. Como veio a escrever O...

GR: Eu fui lá quando estavam começando a fazer Brasília. Onde se construía uma grande cidade. Aquela paisagem das plantas falam, outras coisas também são de lá... a viagem no jeep... são as coisas que mais se destacaram para mim no mato de Brasília...

FC: E a dimensão simbólica das aventuras desse menino. Como é que você as classifica? De viagem de descoberta? Primeiro encontro com a morte? Primeiro encontro com a realidade?
GR: Com a realidade...

FC: Depois da morte do peru o menino deixa até certo ponto de ser menino. O peru é para mim um símbolo de beleza, um símbolo da vida. Este conto tem passagens muito belas, muito profundas, com uma intuição rara do mundo infantil, aliás você interpreta muito bem, trata com muita sensibilidade, com grande carinho, com muita doçura as crianças. É muito dramático a cena em que o menino com o seu pensamentozinho ainda em fase hieroglífica chega ao quintal na expectativa de ver o seu garboso peru e depara com um segundo peru, muito menos belo que o primeiro, a dar bicadas ferozes, cheias de raiva e ódio na cabeça decapitada do peru morto. Psicologicamente esta cena é muito violenta, vemos o menino confuso, atordoado, sem entender nem compreender a crueldade da vida: como é que a vida pode ser tão cruel? A cena é autobiográfica?
GR: É autobiográfica de toda a criança brasileira que viveu na roça...

FC: Eu gosto muito da pertinência do seu vocabulário e da visão infantil do mundo que sugere. Por exemplo, o menino olha para a construção do aeroporto e diz "Ali fabricava-se o grande chão do aeroporto"... fabricava-se... Há de ser dificílimo traduzir todas as sugestões e conotações da palavra "fabricava-se" na nossa língua... E o medo secreto que ele sente ao ver o tratorista de cigarro no canto da boca, derrubando uma bela árvore, alta, de casca clara? O menino olha para o céu em súplica, um céu que você descreve como sendo "atônito de azul", e então faz uma careta de aversão e medo, e trem todinho, sentindo que a árvore morrera tanto... Sabe, ó Guimarães Rosa, eu sei esta passagem de cor...[8] Todas as coisas que o tio mencionava se fixavam na memória do menino, existindo para ele no perfeito puro, em castelo no ar já armados. Tudo isto era para o seu tempo ser dadamente descoberto, fizera-se primeiro estranho e desconhecido. O menino estava nos ares... Você há pouco falou da "música" que uma obra toma. Para mim a música deste conto, (para mim a música deste conto) é o carinho feito de algodão em rama com que você protege e envolve esse delicioso, esse harmonioso, esse amoroso menininho. Há muito amor, muita pureza, muita inocência nesse... nessa gema de conto... 
Bom, agora gostaria que você discutisse em pormenor um dos seus contos mais recentes, explicando o que significa, revelando as suas intenções, esclarecendo-me dúvidas. Poderíamos falar de Sorôco, Sua Mãe, Sua Filha, ou melhor ainda, como você gostou da interpretação que fiz deste conto, poderíamos falar de outo por exemplo, Darandina, a que já aludimos... 

GR: Deixo isso para você, Camacho, você me interpreta com tão bom gosto, com tanta certeireza (?), tanta profundidade... você diz coisas generosas e tão simpáticas, a dizer que eu prefiro ouvi-lo... Aguardo com o maior interesse a publicação do curso que me dedicou na Universidade de Zurique...
Nota do entrevistador: Em mais de uma ocasião Guimarães Rosa disse-me de fato que gostava imenso de me ouvir falar da sua obra, incluindo-me por generosidade e delicadeza no grupo de "pessoas de sensibilidade e bom gosto" a quem ele ocasionalmente pedia uma opinião para ver como reagiam e interpretavam a sua obra. A razão de responde neste trecho da entrevista com frases curtas e até um pouco forçadas deve ter sido outra. Note-se que em seguida eu aludo ao fato de ele já ter descansado um bocado... Conheci-o já doente e sempre preocupado com a sua saúde. A pessoa que não lidavam com ele na intimidade mal se apercebiam disto porque ele era uma pessoa viva e exuberante, com explosões de alegria quase infantil, com o seu riso de menino divertido. Ele tomava parte com energia e entusiasmo nos debates públicos, revelava-se cheio de vitalidade. Todavia isto parecia depois esgotá-lo. Guimarães Rosa alheava-se então do que se passava à sua volta e dava a impressão de querer poupar-se. Enquanto Rubem Braga, Magalhães Junior, e eu percorríamos Berlim, para conhecer a sua vida noturna, Guimarães Rosa recolhia-se aos seus aposentos. A princípio ainda pensei que fosse atitude ascética mas cedo vi que era mais do que isso. Guimarães Rosa pedia-me às vezes para subir até o seu quarto para conversarmos um pouco mas combinava comigo uma maneira especial de toca à campainha porque de contrário ele não interromperia o seu descanso para vir à porta.
FC: Agora que você já descansou um bocado gostaria que falássemos de um problema que me interessa imenso como tradutor. Nós já discutimos este assunto várias vezes e você está de acordo comigo. Para melhor desenvolvermos o assunto eu vou estabelecer...,digamos os perímetros (?) da discussão. Bom, de acordo com a minha teoria da tradução há dois movimentos ou fases específicas para a tradução de uma obra literária. Primeiro há um movimento ascendente, em que o tradutor apreende o que o autor pretende comunicar. Esta fase do tradutor corresponde à fase de inspiração do autor original, e por assim dizer a obra original toma o lugar da inspiração para o tradutor. Para que a tradução corresponda ao original é preciso que o tradutor compreenda o autor, o que infelizmente nem sempre é o caso. Há dois depois um movimento descendente... que corresponde aquela fase de laboração, de luta, de procura dos meios adequados de expressão a que você se refere quanto à sua própria criação literária. É muito curioso que você fale de fidelidade a uma coisa que você como autor sente que existe previamente e que você como autor quer alcançar, uma coisa que você poder trair, que tem de guardar... As suas palavras poderiam aplicar-se com rigor ao que acontece em relação ao tradutor mas aí o que o tradutor quer alcançar existe de fato como coisa externa e objetiva que ele internalizou através da sua compreensão da obra. Você também falou do texto escrito como ponto de apoio e registro para o autor que depois o corrige, faz e refaz, numa tentativa constante e progressiva de alcançar uma forma cada vez mais objetiva e impessoal, uma forma que valha independentemente do nosso próprio subjetivismo superficial e pessoal. O que acontece com o tradutor, com a tradução provisória que faz, que ele melhora progressivamente na esperança de por um lado aproximar-se cada vez mais fiel ao autor e por outro lado conseguir uma forma valida, independente do seu subjetivismo pessoal, que valha e seja comunicativa para os outros. Este esquema, o esquema que acabo de apresentar tem uma vantagem: podemos falar aqui dos erros da tradução que surgem do fato do tradutor não ter conseguido compreender o original, por ter traído o que se pretendia comunicar, involuntariamente, muitas vezes...; podemos falar também dos erros ou melhor deficiências na escolha dos meios da sua própria língua para expressar aquilo que foi bem compreendido, às vezes sem culpa do tradutor e até porque a sua língua não dispõe dos instrumentos necessários à expressão de certo tipo de realidade, por exemplo, referente à flora ou fauna de determinada região exótica, ou também referente a certas realidades psicológicas que não existem ou tem uma valorização diferente num comunidade cultural completamente diferente; e poderíamos talvez falar da falta de comunicabilidade de determinada tradução. Bom, quais as falhas mais flagrantes da tradução das suas obras? Por você não ser compreendido? Por não encontrarem os tradutores expressão adequada para aquilo que você comunica? Por não conseguirem tornar-se elas próprias um trabalho de arte?

GR: Eu tenho viajado muito, lido muito, em diversas línguas. Posso comparar (trecho ininteligível)... as traduções dos meus livros em geral muito boas. Há faltas mas em questões pormenor[9], compreendeu?

FC: Eu não pretendia atacar ou diminuir o valor das traduções porque a tradução de qualquer obra é sempre um coisa muito trabalhosa. E então quanto à sua nem se fala. A fase da compreensão ou apreensão da sua mensagem, das suas intenções é já por si dificílima, e o segundo movimento, da procura dos meios adequadas para expressar o que você quis dizer e comunicou em português, requer um tradutor capaz, um verdadeiro artista, especialmente em face do rigor e precisão da sua obra, das suas soluções.

GR: (Inaudível, Talvez tenha dito "precisamente")... não só pelo amor com que todos tem feito as traduções, não como um trabalho de rotina, ou comercial. Todos eles, mesmo........., são homens competentes, ou mulheres, no caso da americana, e que fazem aquilo com amor. Isso é uma grande (sorte). Não é fácil, não... E eu, uma das coisas que eu na minha carreira de escritor que eu tenho de ser mais grato a Deus ou ao Destino, não é verdade? Depois também pelo resultado dos seus esforços, que eu vejo com prazer. Até hoje li com grande prazer todos os meus tradutores. 

FC: Sim?

GR: Agora sempre que cada um chega recebo-o com um pouco de medo, ou uma grande curiosidade e fico sempre entusiasmado como o resultado. Agora eu recebi o último deles com o maior encantamento, como se não fosse livro meu... Quer ver?

FC: Uma beleza! Muito bem apresentado...[10]

FC: Então, quer dizer que não há diferenças entre as intenções do original e as traduções, que estas tem o mesmo impacto que suas obras?[11]

GR: Bom a gente nota que há diferenças às vezes. Ma não tenho feito... a não ser em certos casos... confronto com o original porque o Magalhãesinho, o Magalhães Junior  você lembra? Quando nós fomos à Alemanha aquela vez? Eu recebi em Frankfurt o segundo volume em francês do Corpo de Baile, Les Nuits du Sertão. Ele foi a Paris e me mandou o livro, me mandou a Frankfurt. Eu estava na feira do livro. Depois fui ao sul da Alemanha, nós fomos, você lembra?

FC: Sim, sim...
GR: Nós chegamos em... Até onde você esteve comigo, Camacho, até onde?

FC: Eu vim de avião com vocês de Berlim para Frankfurt. Depois tive de seguir diretamente para Zurique e vocês continuaram... 

GR: Bem, eu estava sentado ao lado do Magalhães Junior no avião lendo com grande entusiamos "Les Nuits du Sertão". Eu disse a ele "Está tão bom que não vou conferir com o brasileiro. É um coisa boa a gente ser traduzido." Magalhães me respondeu: "Está muito bom. A gente não deve fazer confronto, porque então você vai amaldiçoar o tradutor todas as vezes que ele te trair, todas as vezes que ele te superar." Bom, mas esta versão está muito boa. Agora a tradução italiana do "Corpo di Ballo" é magistral[12][13].

FC: Sim, mas toda a tradução tem de ser, pelo menos até certo ponto, uma interpretação pessoal do tradutor... Embora o original exista para o tradutor como algo, digamos subjetivo, independente do tradutor, a tradução nunca pode deixar de ser a maneira como o tradutor vê esse original e essa tradução reflete pelo menos em parte o cunho da pessoa que a fez...

GR: Não, não as interpretações dos meus tradutores são mais ou menos fiéis, tem sido muito fiéis ao meu livro[14] porque o meu livro é muito obrigatório. Você próprio reparou isso. Ele não permite afastamentos porque senão dava um contra-senso. E muito impregnado, coisa muito martelada, duro com imposições preentórias (?). Mas você tem razão, a gente sente cada um não só a pessoa como o próprio país do tradutor na tradução...

FC: É verdade, a tradução é uma coisa curiosíssima, um espelho que funde duas línguas, duas culturas, duas almas, uma espécie de ... (inaudível[15])... Cada língua é um repositório da história e cultura do país ou países que a usaram no passado e ao utilizar determinada língua para uma tradução nós inserimos nessa tradução, mesmo sem nos apercebermos, muitos dos valores dessa cultura e dessa civilização, e estes podem ser diferentes daqueles que encontramos na obra original... os pontos de referência são diferentes... Mas voltando ao assunto, ao assunto da importância do tradutor e a sua influência sobre a tradução, o que eu queria dizer há bocado era que ... sendo a tradução uma interpretação, é extremamente importante que o tradutor tenha pontos de contato com o autor, que se identifique com ele, que pense e sinta e veja as coisas como ele... senão... caso contrário, o que eu quero dizer, é que sem isso ele não pode representar o autor noutra língua, não pode falar por ele, ou fala sem convicção traindo o autor. Ora você encontra esta identificação da parte dos seus tradutores?

GR: ... (inaudível: qualquer coisa "francês")[16]... é uma delícia. Ai que eu digo: cada um tem mais como pessoa[17]. Ele é uma pessoa que sabe grego, tem uma cultura humanística formidável, tem mais de trinta livros traduzidos, traduz sueco, alemão, inglês, italiano, do espanhol traduz o português. É um francês com esta cultura, não é? Tem a experiência da vida, a gente sente que é um camarada muito humano, muito sensível, com uma compreensão muito profunda. Na minha correspondência com ele, ele me conta pequenas anedotas da aldeia dele la na Normandia. Um dia chego mesmo a publicar as histórias do meu tradutor. De grande personalidade, a gente sente aquele cunho sobre a tradução dele. O original ganha sentido... Todas as obras perdem mais ou menos aspectos de superfície, mas tudo o que perde por um lado ganha de outro porque a comunicação por meio da palavra tem muita coisa de incompleto, que precisa de ser completado, de indireto que pode ser (explicitado). Às vezes resulta um coisa humana, mais ceivosa, mais comunicativa, mais... Todos recriam minhas coisas, lhes dão nova vida...

FC: A recriação é inevitável na tradução. Um novo todo artístico constituído com novas palavras, palavras em outra língua, com relações orgânicas entre elas, tem de ser criado. Todavia o ... (nome inaudível) é bastante místico, ele tem propensões místicas, dá preferência a interpretações místicas, mesmo quando o assunto é bem terra a terra e nada tem de místico...
GR: Bom, mas o meu livro tem esse aspecto...

FC: Também tem, também...

GR: Tanto que qualquer dúvida que surja ele tem uma grande vantagem. Ele me conheceu pessoalmente, conversei com ele na Alemanha. Quando tem dúvida ele se lembra de mim. Ele tem muita semelhança, muito parentesco comigo: ele é poeta e tem também abertura religiosa muito grande. Isso é muito importante. Muito importante. Porque no meu livro, você pode estar certo, Camacho, quando tiver uma dúvida, você adote a solução poética, o solução metafísica, a solução mística, então você acerta. Em qualquer caso nunca é o terra a terra. O terra a terra é sempre o pretexto. 

FC: Bom, mas as suas obras estão cheias de ... descrições bem concretas, que a gente pode imaginar e ver, cenas realistas... 

GR: Não, não, não... Eu gosto de apoio, o apoio é necessário, o apoio é necessário para a transcendência. Mas quanto mais estou apoiando, quanto mais realista sou, você desconfiar. Aí é que está o degrau para a ascensão, o trampolim para ... (salto) Aquilo é o texto pago para ter o direito de esconder um porção de coisas... para quem não precisa de saber e não aprecia... Você esta entendendo?

FC: Muito bem.

GR: Não há, não há, aí quando eu disser... (não se entende a fita)... Agora tem uma frase que todos os três tradutores não botaram bem. Uma mulher, interceptando, diz ao homem... (inaudível...) "O que tu não repartes tu tens". Todos traduziram terra-a-terra: você tem muito mas não reparte, ou você...

FC: Mas ó Guimarães Rosa, eu lembro-me dessa passagem e ela não é nada fácil de interpretar. É preciso tomar em conta o ritmo, o seu caráter oral, a sua feição interrogativa. Para a interpretar eu sugeri aos meus alunos que a concebessem como uma pergunta e que invertesse a ordem sintática: Será que "tu tens/ o que tu não repartes?[18]"

GR: É, eu expliquei para eles que não era isso o que eu queria dizer, que não. Eu descrevi para o tradutor treze notas lendo o livro dele[19] e expliquei "O que tu não repartes tu tens" quer dizer o seguinte só se pode ter uma coisa realmente quando se reparte. Por exemplo: eu só posso ter o pagamento desta entrevista porque reparto com você...

FC: (gargalhando) Há! Há! Há[20]!

GR: Você compreendeu o negócio?

FC: Não há nenhum negócio aqui, apenas dedicação, sacrifício pela arte, pelo conhecimento... Mas fora de brincadeiras, trocadilhos à parte, compreendi muito bem, um coisa e a outra...

GR: (rindo) Hi! Hi! Hi!

FC: Mas é melhor mudar de assunto, é melhor voltar aquilo que discutíamos, que era... a interpretação das suas intenções....

GR: Tá bem... está bem... Mas você note que não é fácil... nem sempre é fácil, excepto para um leitor especial, como você, que me lê com alma, de dentro para fora, com intuição, que às vezes me compreende melhor que eu a mim próprio, que traz o meu subconsciente à superfície... O texto nem sem ajuda se for lido como coisa objetiva, material, você não pode culpar nenhum tradutor porque o texto é pouco claro, quase ambíguo... que não repartiu... que tem ... É muito concentrado, não é verdade?

FC: É.

GR: Como você disse é preciso intuição, . para apreender senão escapa... A minha concepção do mundo não é de verdade material, objetiva... Essa realidade objetiva não existe, eu não acredito nela, é apenas aparência. A verdade, a verdadeira realidade é outra coisa para além desse mundo objetivo, outra coisa... que se encontra nesse mundo das Primeiras Estórias, na estória daquela meninazinha, da mena que faz milagre Nhinhinha, A Menina de Lá. E como você sabe[21] Nhinhinha adoeceu e morreu. Dizem que dá má água, desses ares. Portanto a explicação realista que na verdade nada explica porque na verdade todos os vivos atos se passam longe demais. A verdadeira causa das coisas não é material. Não é o micróbio que mata, esses são apenas os agentes. Há mais alguma coisa... nós estamos entre sombras... Por exemplo ... um outro exemplo, Camacho, a frase, a frase "O senhor sabe o que é o silêncio é? É a gente mesmo... demais" Porquê? Porque no silêncio você sente você mesmo, de uma maneira muito forte. Por isso o silêncio assusta. O alemão não acertou, o inglês também não. Espere Camacho, eu mostro para você... Olha aqui... e agora aqui...
Nota do entrevistador: Deduz-se desta passagem que consultamos estas traduções, mostrando assim que Guimarães Rosa não estava sendo muito objetivo quando disse que nunca fazia comparações. Aqui, paradoxalmente, os papéis invertem-se e sou quem defende o tradutor alemão.

FC: Sim, mas o alemão está bastante...

GR: Camacho mas olha bem no Português: "É a gente mesmo... demais." É uma das frases que eu gosto mais. Outra diz assim, deixa eu ver se lembro... (Nota do transcritor: Fita no fim, má audição. Consultar e verificar porque deduzi e completei algumas passagens.). "E era eu mais mil vezes, que estava ali, querendo, próprio contar... (inaudível, confuso) tão desmarcado, desses meus olhos esbarrarem num horror de nada."
O terrível aqui é que os olhos dele iam esbarrar num horror... 
Foi esta a expressão, não é, Camacho? Esbarrar numa quantidade enorme de nada, o nada concretizado, tornado objeto, objetivado... (Nota do transcritor: troca de fitas).

FC: Deixa então ver como saiu a tradução...[22]

GR: O francês, ele tem uma coisa... deixa procurar... um coisa bastante livre (fita em branco por muito tempo, provavelmente para localizar o texto: J)... Mas olha aqui o inglês ... Já traduziu certo...

FC: Sim, mas você está usando um linguagem, como hei-de-dizer, uma linguagem de caipira não é verdade? Aquele o mesmo trecho aparece numa linguagem civilizada, ou melhor, culta, requintada mesmo... Há um desnivelamento, um discordância que afeta o tom, o ritmo, aquilo que você chama música, afeta mesmo o sentido e é um contra-senso esse nível de linguagem... perde...

GR: Não... não está bom, não. Tem que ter um fim, uma direção que falta aqui. Enfim, (na creação artística) tudo é problema, não há aspectos supérfluos, cada palavra tem a sua importância... Então nas Primeiras Estórias... (o tradutor) não pode fugir à pauta, não pode inventar, exige disciplina. Uma tradução das Primeiras Estórias tem que ser escrupulosa, senão não pode...

FC: Muito rigorosa, tem que ficar disciplinada (!) à sua mensagem, é esta que dá uma visão totalizante à obra, que coordena, dá unidade ao todo, a diversidade funcional das partes fica integrada por uma espécie de tema que atravessa a música da obra...

GR: (inaudível[23])... perspectiva. Por exemplo, quando eu digo "circunstristeza" não é para fazer uma palavra nova, é porque tenho que dizer que tudo estava triste, mas sem usar linhas que quebram a perspectiva, sem estruturas muito pesadas se não, não vôa. Tudo influi. O negócio é como na música, uma nota, só uma, uma pausa, uma vírgula é importante, conta. Não é verdade[24]?
FC: Sem dúvida.

GR: Então, em vez de circunstristeza, outro diriam assim: "Ele estava tão triste, cheio de melancolia" ou que "ele vivia triste, que tudo lhe parecia triste, desde o horizonte, a paisagem, tudo". Agora quando eu digo "circunstristeza" está dito o almanaque, todinho, com toda sua força mas sem gastar espaço. Na estória do ... (inaudível)[25] tinha um parágrafo que eu botei por extenso, botei qualquer coisa... Retocada a estória eu vi que aquilo não servia ou servia para outro[26]... (sendo) a história tão pequena aquilo não correspondia. Depois de dez ou vinte vezes pensei, repensei, transpensei[27] e descobri porquê.
O meu sub-consciente me dizia que aquele parágrafo defalava[28], por isso de nada servia. Então, em vez de parágrafo ficou só uma palavra "coraçãomente". Havia um ... (não se ouve bem: bumbum?), uma pancada de bombom, de caixa... Às vezes uma palavra diz mais (do) que um parágrafo. Quer ouvir o resultado?[29] Sionésio tomado por um repentino amor por Maria Exita, dirige-se a ela e propõe: "Você, Maria, quererá, a gente, nós os dois, nunca mais precisar de se separar? Você comigo, vem e vai? Disse e viu. O polvilho, coisa sem fim. Ela tinha respondido: - "Vou, demais." Desatou um sorriso. Ele nem viu. Estavam lado a lado, olhavam para a frente. Nem viam a sombra da Nhatiaga, que quieta e calada, lá, no espaço do dia." "Sionésio e Maria Exita - a meios - olhos, perante o refulgir, o todo branco. Acontecia o não-fato, o não-tempo, silêncio em sua imaginação. Só o um-e-outra, um em-si-juntos, o viver em ponto sem parar, coraçãomente: pensamento, pensamôr. Alvor. Avançavam, parados, dentro da luz, como se fosse o dia de Todos os pássaros".

FC: Que beleza! Como você é grande, ó João Guimarães Rosa!
Você acaba de me ler uma das melhores páginas de amor na nossa língua, em todas as línguas. Eu julgava que compreendia mas agora compreendo muito melhor porque o ritmo, a musicalidade como você lhe chama, é essencial para se entender toda a pujança da passagem, do... da cena. Que privilégio ouvir você ler este conto. No silêncio da minha imaginação eu vi Sionésio aproximar-se de Maria para lhe falar com frases entrecortadas, em que o silêncio magnético entre eles diz até mais do que as próprias palavras, em que cada palavra, nesse contexto fala mais do que parágrafos inteiros, sem quebrar a textura, a sequência, a melodia... Que beleza, meu caro amigo!
Sionésio quase a gaguejar, olhando bem dentro dos olhos de Maria, dizendo "Você, Maria, quererá", até isto é quase suficiente para Maria entender, tão intensas, tão condensadas são as palavras aqui. É fácil imagina uma cena em que um Maria responda simplesmente: "Sim, eu quero demais." Enfim, esta passagem só por si quase que dá para uma aula mas eu vou aproveitá-la para fazer uma confissão a você. Quando eu comecei a ler a sua obra experimentei uma tremendas dificuldades, talvez até por ser de Moçambique, por ser Português de Moçambique. Depois vi que a sua literatura não era fácil nem para os brasileiros, que não era para toda a gente. Custou-me a habituar ao seu vocabulário... Não faça caretas! Oiça-me até ao fim! Com a prática e a experiência a leitura da sua obra tornou-se mais fácil, o segundo conto não me custou tanto como o primeiro, etc. Mas houve uma coisa que eu aprendi e isso é que aquilo a que você chamou "música" é extremamente importante para a comunicação, comunica tanto como as próprias palavras, e é preciso compreender as suas palavras de dentro para fora, é preciso interpretá-las como seres vivos, é preciso tomar em conta as circunstâncias em que ocorrem por que estas completam as palavras. A música...

GR: Sem dúvida...

FC: ... corre dentro das próprias palavras como se fosse o sangue que lhes dá vida, aquela vida que lhes permite serem mais do que são, que lhes permite transcenderem, que lhes permite comunicarem mais do que comunicariam se fossem peças concretas e sem vida própria, uma ralidade sui generis. Essa música manifesta-se de maneira admirável na passagem que que assinala a união quase que mística desses dois seres, "em-si-juntos", como você diz, vivendo em intensidade, em estado de ponto, como você diz, o ponto em que a matéria derrete e fundem-se os seres, o açúcar das suas almas... Aqui, neste êxtase, as palavras deixam de ser, ou melhor são mais do que simples palavras, são música, são delírio, e por isso, para mim, esse jorro, essa torrente de palavras quase irracionais... pensamento, pensamôr, alvor... o rimar, as rimas dos seus queridos loucos, a sua cantiga que ouvimos naquela inesquecível procissão de Sorôco, Sua Mãe, Sua Filha.. Estas palavras não podem ser estudadas fora do contexto. mesmo "coraçãomente" e "pensamento" só fazem verdadeiro sentido aqui neste texto, não podem ser analisadas em abstrato sem referência ao seu habitat. Para  mim, Sionésio e Maria estão vivendo em ponto de fusão, em êxtase, estão vivendo "coraçãomente", mas não ao nível material ou corporeal, eles estão na sua região dos castelos no ar, todo o seu êxtase se passa ao nível do "pensamento", um pensamento que é um "pensamôr", que é um alvor, uma claridade, uma iluminação, um ver melhor, um sentir mais. Você concorda, Guimarães...?

GR: Claro, como não, é isso mesmo, quando você acerta, acerta mesmo, me interpreta melhor do que eu próprio...


FC: E quando não acerto?

GR: Você não acerta quando vai consultar o dicionário para saber o sentido, quando não parte da melodia[30], quando não segue a música...

FC: No entanto as palavras tem essa base no dicionário, caso contrário não poderia haver comunicação social, ninguém se entenderia.

GR: ... que a música usa transformando...

FC: Sim, mas música não é, não pode ser elemento único... há outros elementos que contribuem para a comunicação e para a transcendência da obra.. Por exemplo, a dimensão simbólica que faz com que... com que, por um lado,... o que é afirmado ganhe significado figurado que ultrapassa e transcende os dados objetivos da afirmação... Outro exemplo de outro elemento seria da imagem visual que se sugere e que...

GR: Claro, claro... mas é tudo a mesma coisa, parte da mesma coisa...

FC: Tudo a mesma coisa? Sim, talvez... parte da mesma coisa, não há dúvida, diferentes aspectos contribuindo para que o todo se revele.. A sua acepção de "música" é talvez mais lata do que aquilo que eu entendo por ritmo, por pulsar, por manifestação sensível da vida... Para mim, embora com esta conotação central da vida em exercício e em manifestação, "música" associa-se também, principalmente, à sonoridade, àquilo que se ouve, à música-música... E embora esse aspecto da sua obra seja de extraordinária importância para mim, talvez por defeito pessoal eu apreendo o que você tem para comunicar através da via visual. A música é importante mas o impacto visual que você tem em mim é tremendo. Eu vejo o seu menino em Brasília, no avião, a ser tratado com carinho, recebendo doces que o tio e a tia lhe dão; eu vejo a cena do enterro do irmão Dagobé mais velho, o seu Damastor-Adamastor como eu lhe chamo; vejo a figura do pai na canoa da Terceira Margem; vejo o segundo peru a bicar ferozmente a cabeça decapitada do peru imperial Margens da Alegria; vejo a procissão de Sorôco. E aqui no texto que você citou eu vejo, como se chama, Sionésio e Maria Exita retratos em traços, hagiológicos, unidos como dois anjos em êxtase, contra o refulgir brilhante do fundo de luz, dois anjos indo para além da própria vida, ascendendo até aquela existência que une e funde os opostos, em que eles, paradoxalmente, avançam parados... veja lá, "avançam, parados"... a linguagem sagrada dos loucos que fazem sentido sem nós sentirmos. Deixa ver o texto exato "Avançavam, parados, dentro da luz, como se fosse o dia de Todos os Pássaros". A ascensão final ao céu, puro misticismo, visto por El Grieco da arte das palavras, pura religião...[31]

GR: (rindo) Hi! hi! hi![32]
Nota do transcritor: A fita em branco por um longo período.

FC: As "Primeiras Estórias" ainda não começaram a ser traduziadas?

GR: Já, já. Na França, na revista... (inaudível). Você conhece, Camacho?

FC: Não, mas tenho assim uma vaga ideia, já me falaram mas...

GR: Eles preconizam uma literatura diferente, a edição é magistral, mais maravilhosa (?)[33] que eu já vi...

FC: Ah, sim, agora me lembro, dedicada à literatura mundial...[34]

GR: Sim... Na Inglaterra vai sair agora em antologia a Terceira Margem. No Egito vão botar na antologia... em árabe. Na Alemanha...

FC: Sim e na Suíça, também, na Suíça também...

GR: Agora, você sabe, Camacho...

FC: Desculpe-me interrompê-lo mas se a ocasião passa volto a esquecer. Eu gostaria de incluir a Terceira Margem na minha antologia.

GR: Eu sei, você escreveu até ao dr. ... (inaudível:)[35]

FC: Sim, mas a dificuldade era que eles queriam que a tradução fosse do tradutor deles quem quer que ele fosse. E nós não quisemos. É que o nosso era um projeto coletivo, um projeto acadêmico, sem preocupações econômicas, e tínhamos a coisa já pronta, já traduzida no nosso seminário. Já tínhamos tradutor e aliás uma tradução apurada, boa. Mas não era uma questão de qualidade da tradução, é que a tradução deles, boa que seja, ficava fora de propósito e eles querem ser só eles a traduzirem Guimarães Rosa. Você tem que voltar a escrever ao seu editor alemão....

GR: Está bem mas eu gostaria de ter uma cópia da sua versão...

FC: Eu depois envia com a lista dos autores incluídos e dos tradutores que participaram no seminário...

GR: Os tradutores são muito ciumentos...

FC: São...

GR: ... todos...

FC: Sim, mas não só os tradutores...

GR: De qualquer país...

FC: Sim... mas eu gostaria de ...

GR: ... apoiá-los, porque...

FC: Trabalhamos juntos, sabe, e é necessário incentivá-los. É gente nova e o mais difícil é conseguir que publiquem uma primeira tradução, que rompam a barreira porque há uma porção de gente a querer que nada façam, talvez para não ter concorrência...

GR: Então isso é amor pela coisa, não é verdade?

FC: Sim, eu creio que sim, mas há quem julgue o contrário. Não comem nem deixam comer, há muita inveja, meu Deus...

GR: Bom, eu estou com eles. Estou muito aborrecido com.. (nome que não se entende: nota do transcritor). Tem nome de palhaço, não é?[36]

FC: Não sei quanto ao nome mas o que ele é e um grande veado e por cima disso um grandíssimo e refinadíssimo filho da puta...

GR: Eu sei, mas não vai dizer isso para ele...

FC: Não, não...

GR: Eu sabia, estava perfeitamente informado. Mas como é lento. Escrevia uma carta, depois outra e outra, uma coleção bonita e eu comecei a me chatear, me enchi. Aí eu ia à Alemanha. Respondi àquela lenga-lenga, tudo mas disse "Não estou entendendo, não entendo. Vocês são muito demorados, muito indecisos, muito lentos, e eu não estou acostumado a lidar com editores assim. Vamos suspender esta correspondência. E vou agora à Alemanha, não mês que vem estarei em Berlim para um colóquio. Depois vocês me poderão ver lá, ou talvez eu passe em Munique. Quando eu cheguei lá eu conheci o dr. ... (inaudível: transcritor) acompanhado de um telegrama...

FC: Sim, ele escreveu-me, contando... Eu recomendei-o a ele, dizendo maravilhas de Guimarães Rosa...

GR: Mas ele recebeu-me esnobando[37] a gente um pouco. Ele não estava lingando para o escritor sul-americano...

FC: Esta gente do Norte é mesmo assim mas um dia pagam por toda a sua soberba. No entanto isso é um pouco do feitio pessoal dele, ele é melhor cara do que parece, uma vez posta de lado a máscara...

GR: De fato ele mudou de repente. Veio falar comigo. Queria conversar comigo, todo interessado, me pedindo por favor...

FC: É isso mesmo, chamo a isso o empiricismo germânico. Precisando, estando interessados, depois fazem um volte face e são mesmo capazes de nos lamber o cu. Eu fico desarmado, esta gente não tem nem memória nem sentimento de dignidade... Mas o que importa é que por qualquer razão ele ficou muito impressionado com Você, você passou a contar para ele e ele escreveu coisas muito interessantes a seu respeito...

GR: Ele tinha um telegrama, não mostrou todo, mas a parte que ele mostrou era uma coisa assim; "Procure imediatamente escritor brasileiro João Guimarães Rosa aí no colóquio e proponha a ele imediata assinatura de contrato". Duas vezes a palavra imediatamente e quando eu perguntei ao Vítor[38] ele disse: "Sobre a sua obra eu não preciso de opção, nem de tempo para (considerar)." Sues livros são universais. Eu quero fazer o contrato imediato.. todos os seus livros.. Você compreende?

FC: Sim, dá-me um cigarro também.

GR: Oh, perdão. É eu que não tenho tempo para estas coisas[39] e agora quem pede opção eu cobro quinhentos dólares. Não é por nada, compreende? O livro está já ali não é verdade? Saiu na Alemanha, na França, na Itália, em Portugal, está saindo nos Estados Unidos. O editor sabe ou não sabe. Se ouviram falar em Guimarães Rosa, está bem. Não é direito?

FC: É assim mesmo.

GR: Portugal...

FC: Infelizmente Portugal no pode pagar muito bem... fracas condições econômicas, um mercado muito pequeno, edições pequenas...

GR: Mas Portugal para muito bem até.

FC: Ah, sim?

GR: Publica o livro e mando tudo, todo o dinheiro de uma vez. 

FC: Ah! Honestos são, devem ser, mas não pagam bem?

GR: Na hora o livro sai, eles pagam na hora que sai o livro.

FC: Sim, quanto à pontualidade mas você está a ser simpático. Realmente na Alemanha param melhor, muito melhor. 

GR: Bom, é como na Itália. Mas eu sou um escritor. Um escritor que escreve livros, faz livros. O seu tem de ser reconhecido, compensado.

FC: Concordo. 

GR: Agora, engraçado... não é só agora porque os livros estão tendo sorte que eu faço isto. Eu sempre fiz isto.

FC: Curioso, alguns escritores seriam até capazes de pagar para serem publicados aqui e no estrangeiro. Eu não digo isto como crítica a eles porque, tendo dinheiro, eu faria o mesmo. É que para mim o dinheiro não tem assim tanto valor, há coisas que tem mais valor[40]. Agora isso revela uma grande confiança em si próprio, oh Guimarães Rosa...

GR: Não, é antes desinteresse. Eu não quero perder tempo. Ou é uma coisa boa lá para fora ou eu não quero perder tempo. E sou muito objetivo, eu não sou pessoa que me sacrifique pela arte. A literatura não é a coisa mais importante pra mim. Eu sou um homem religioso. O importante pra mim é a religião compreende? Tenho um talento, coisas pra dizer, de maneira que eu escrevo. Mas nunca tive pressa com as minhas coisas. Não.

FC: Você esta escrevendo agora qualquer coisa? O que é que está a escrever? Um romance, contos, novelas?

GR: Eu estou sempre escrevendo. De repente meu processo irrompe, tanto a cosia começa como eu depois paro. Tenho romances interrompidos, contos inacabados, novelas, muita coisa...[41] compreende?

FC: Sim...

GR: Eu estou sempre trabalhando, acumulando, cogitando. De repente cristaliza a ideia de fazer um livro. Então junto coisas.... que cresceram, separadas, mas que agora se completam. Mas agora não estou nessa fase?

FC: Não está na fase de cristalização, da conjugação e amalgamação desses elementos?

GR: Não, agora estou fazendo, fazendo várias cosias. Aqui e ali. Estou ... (inaudível) vivendo as coisas....

FC: Sim, é natural que depois de um esforço tão grande, de um (trabalho) tão perfeito como o das Primeiras Estórias você precise de descansar um pouco[42], que haja uma fase, vamos lá, de consolidação de forças, de recuperação, de preparação para o arranque seguinte...

GR: Estou saindo disso, estou trabalhando já, mas não estou... (fita pouco clara, quase inaudível, talvez "não estou cristalizando")... (Todavia/ no entanto)... tenho já muita coisa pronta, já retocada. Mas só quando eu sinto a hora de soltar o livro é que pego aquele negócio. É um tipo de inspiração diferente, mais ativa, mais... (fita pouco clara: qualquer coisa terminada em "mente": premente? urgentemente?)
FC: Não revele aqui nenhum segredo, senão eu publico mesmo...

GR: Ãh?
FC: A pergunta que eu vou fazer agora foi encomendada. Eu prometi fazê-la mas você não responda se não quiser: Qual será a sua próxima obra?[43]
GR: Ah, isso eu não sei, não posso saber. Depende como é que vai baixar inspiração.
Nota do transcritor: Diversas pessoas a falar ao mesmo tempo, confusão de vozes, gravador desligado[44].
GR: Eles são danados, hein, Camacho?
FC: Danados? Por quê?

GR: Porque você... consegue fazer uma porção de coisas, conservando um ar não-gasto, de jovem... O Alexandre Olavo ficou surpreendido em descobrir você assim moço, não imaginou que você era o próprio, que havia engano porque você é muito simples, muito cordial, com uma cara de menino... parece muito mais moço do que é, não é verdade? E você também deve ter uma impressão dele, talvez...
FC: Eu também fiquei surpreendido, esperava menos mas depois vi que era... mais maduro, muito preciso, bem informado, pessoa capaz, conhecedora e inteligente, com sensibilidade. Mas fui apanhado desprevenido e fiquei a pensar que me achasse um tanto superficial, banal mesmo, ingênuo...

GR: Não, ele achou você cheio de energia e sobretudo moço.
FC: Moço?! Ele também é mineiro, não é? O mineiro em geral é muito sério, muito profundo.

GR: É a melhor gente. Foge um pouco desta bagunça, e isso é muito importante. Eu não sou bom mineiro, mas o Carlos Drummond de Andrade, sim é...
FC: Sem desfazer no resto do país a zona geográfica que se estende de Minas à Bahia é muito interessante do ponto de vista da literatura... Minas então parece um manancial de matéria humana, os mineiros intrigam-me, parecem-me os alentejanos do Brasil, mas mais importantes, gente talhada à pedra, como no tempo do Fernão Mendes Pinto que você tanto admira, gente trágica, com forte sentido de honra, que mata para defender a sua honra, para se fazerem respeitados. Parecem-me muito ligados uns aos outros por elos de solidariedade, uma espécie de maçonaria que me parece ligar até os jagunços. Bom... de que parte de Minas (é você)? É de perto de Diamantina, não é? Ou mais...

GR: Mais para o Sul.
FC: Tenho um amigo de Diamantina que me diz que é um erro falar de Minas ou do mineiro, que há várias Minas, isoladas e diferentes uma das outras, apenas como um denominar comum, as montanhas que as divide e separa e as torna diferentes...

GR: É. A minha terra está mais ou menos assim rumo com... Itabira, está rumo a rumo com o Cor de Espuma (Nota do transcritor: Toda esta passagem ouve-se muito mal, conferir com a fita)... está bem perto mas aqui no meio passa a Serra Geral. É um troço, isola mais do que os Andes, que o Oceano Atlântico. Uma pessoa de lá, que nunca atravessou essa serra é um estranho quando vem cá pra baixo. São regiões completamente diferentes, não conhece nada, até os nomes das árvores, plantas mudam. Está compreendendo? A região que vai para... Pirapora (?), Caminho de Baianos, é muito mais ligada à Bahia que ao Sul de Minas. Olhando no mapa a gente não tem uma ideia da distribuição de influência...
FC: Bom, quando é que você começou a escrever verdadeiramente...?

GR: Em 1937.
FC: Mas primeiro, antes disso, não fez esboço nenhum em Minas, não?

GR: Não, nem pensava em escrever coisas assim. Quando vim para cá é que comecei.
FC: E nos anos que passou na Alemanha, antes e durante a guerra, também escreveu?

GR: É muito difícil para mim delimitar as coisas, porque, como é que, Camacho, eu posso dizer quando começa um livro meu, quanto tempo leva a ser escrito... O processo subconsciente é muito importante e eu estou sempre escrevendo, mesmo mentalmente, observando, comentando coisas, tomando notas ou.. Quando se ajunta tudo isto é que sai uma coisa material, a obra, não é verdade?
FC: Sim...

GR: Eu acho, Camacho, eu noto, conversando com os outros companheiros meus, que alguns tem o livro na cabeça, ficam anos com ele, e depois é quase como se o um livro fosse uma saída deles mesmo, de alguma coisa que já existia neles, não é verdade. Eu? Eu não. Eu estou no meio de um vazio, aquele vácuo. Eu não escrevi nada na Alemanha... quatro anos, mas lia, vivia, tomava nota, pensava, via coisas... É como se, mentalmente, estivesse escrevendo...
FC: Você esteve muito tempo exposta à língua alemã. A sintaxe alemã teve alguma influência nas liberdades e novidades que aparecem na sua obra?

GR: É muito difícil dizer o que me influencia ou influenciou. Tudo me influencia. Você compreende? É que eu sou aberto pra tudo, mas ao mesmo tempo nada me prende, nada me limita. Você compreende? Eu não posso saber o que me influencia porque é uma coisa viva, aberta, continua, complexa. Eu pego um simples almanaque e aquilo me pode, me influencia mesmo. É como se eu ouvisse uma música interior... Sabe, eu não sou capaz de ouvir música como as outras pessoas fazem, calmamente. Eu gosto muito de Beethoven, Mozart, não é, Camacho? Mas não sou capaz de ficar assim, sentado, ficar ouvindo música, concentrado na música. Nem meio minuto. Sempre que eu ouço música começa a germinar uma coisa dentro de mim, minha alma desperta, minha imaginação acorda. Até cinema, quando eu vou ao cinema vejo outras coisas também. É que música, cinema, outros autores, tudo... são catalizadores, eles detonam coisas em mim. Eu já estou trabalhando mentalmente, aquilo é um estímulo, começo, eu já abandono aquilo porque aquilo virou pão... de fumo...[45] De maneira que é muito difícil dizer o que é que me influencia ou o que é reação ou absorção subconsciente. É muito difícil dizer onde exatamente começa o processo de criação ou o que ele tem de voluntário e involuntário. Eu estudo gramática, é interessante saber como a língua funciona, né? Mas, eu já disse a você, quando escrevo um livro não penso que estou escrevendo um livro: eu estou vivendo uma coisa, estou vendo uma coisa, estou pondo no papel essa coisa. Você compreende? De repente sai aquilo que eu escrevo mas não é de propósito, é espontaneamente, sem forçar, é preciso que seja um ser vivo, um ser vivo. Você deve ter reparado uma coisa, eu nunca repito as minhas soluções...
FC: Sim...

GR: Cada um é uma influência, e não há nenhum escrito que eu não ache bom, agradável, gostando, não é? Mas torná-lo como modelo? Não.
FC: Entendo. Isso está muito bem ao nível do seu consciente, das suas opções conscientes, mas gostando não será que não fica no subconsciente nada do modelo lido e de que você gostou?

GR: Sim mas na mesma hora que eu leio tenho de fato paixão por aquilo, gosto imenso, de maneira que entra, deve ter entrado muita coisa. Mas ao mesmo tempo, pobre de mim, entra outra coisa, entra tanta coisa, ficando tudo misturado. O que entra eu junto com... Júlio Dantas, Fernando Camacho, Walter Benjamin, Goethe, Rubem Braga, Magalhães Junior, Machado de Assis, Eça de Queirós. Nada é alto demais. Nem baixo demais. Tudo é aproveitável. Agora, qualquer coisa que eu leio, se eu gosto, eu começo a colaborar com o que leio, mentalmente, eu estou mudando, aproveitando, vivendo, imaginando... Camacho, estou gostando, você vai fazer uma bela entrevista...
FC: Graças a você julgo que não sairá mal mas depois veremos. Mas você tem razão, a entrevista foi muito comprida e você, coitado, deve estar cansadíssimo.

GR: Não é isso, é que agora vai estando na hora para o almoço[46].




[1] As palavras que aparecem entre parênteses na transcrição talvez tenham sido acrescentadas pelo transcritor para completar e dar sentido a frases que estivessem incompletas no texto oral.
[2] Não tenho ideia nenhuma de ter ido buscar a senhora Guimarães Rosa ao aeroporto. Rosa deve estar confundindo-me com o nosso amigo comum Dr. Carlos Oberacker.
[3] Conhecci Guimarães Rosa e também outro dois escritores brasileiros, Rubem Braga e Raimundo Magalhães Junior nesta altura, por ocasião do Colóquio de Berlim de 1962.
[4] Rubem Braga. Foi Guimarães Rosa que me chamou a atenção para a beleza das crônicas de Rubem Braga lendo-me as primeiras as primeiras crônicas que conheci deste autor que Rosa considerava um poeta da mais fina sensibilidade.
[5] A comparação de Guimarães Rosa é motivada pelo fato de eu ter publicado muitas traduções.
[6] Grande parte das estórias de Primeiras Estórias foi publicada pela primeira vez na página literária "Porta de Livraria" que Antonio Olinto mantinha aos sábados, no começo da década de 60, no jornal O Globo, do Rio de Janeiro (a seção literária, no mesmo jornal, também de AO e igualmente chamada "Porta de Livrarias", era diária e existiu de 1956 a 1974; já a página, semanal, doi de 1958 a 1961). Informa Antonio Olinto que o texto mandado por Guimarães Rosa voltava umas quinze vezes ao autor durante a semana. Nesse período Guimarães Rosa mudava palavras, substituía frases, acrescentava parágrafos e/ou anulava outros, usava o telefone para correções de última hora, numa tortura formal que ia de segunda a sexta quando GR aprovava o texto definitivo.
[7] Conferir fita. Passagem inaudível (JF).
[8] A citação não está afinal muito certa. Ver a página 5 das "Primeiras estórias" 3ª Edição, José Olympio, Rio de Janeiro, 1967. A cena em questão ocorre quando o tio chega e fala ao menino das maravilhas do mato, os bando de perdizes, de serimenas, garças, as mais variadas plantas, etc...
[9] Apesar da entrevista ter acontecido há já tanto tempo lembro-me de ter ficado surpreendido com esta defesa dos tradutores que eu aliás não queria atacar como digo na entrevista. Em conversa anterior tínhamos discutido em pormenor as suas traduções, tendo Rosa revelado um conhecimento profundo e bem documentado dos problemas do tradutor prático. O fato de conhecer bem diversas línguas permitia-lhe comparar as diferentes traduções da sua obra. Talvez esta opinião se destinasse não só a elogiar ou seus tradutores pelo trabalho difícil que executaram mas também a indicar-me que as nossas conversas anteriores tinham sido em confidência.
[10] Não sei de que edição falamos então mas julgo que seja aquela traduzida por Meyer-Clason para a Kiepenheuer & Witsch.
[11] GR revelou sempre gratidão em referência aos seus tradutores. Lembra-me uma vez dizer que certa obra sua iria agora "viver" em inglês também. No entanto a sua resposta é aqui um pouco diplomática e evita apontar deficiências que ambos notamos, em confidência, ao comparar os seus originais com as respectivas traduções. (Nota do entrevistador).
[12] Nota do transcritor: Não é possível estabelecer aqui onde termina a citação de Magalhães Junior. Nota do entrevistador: Sublinhei a citação que Rosa fez de Magalhães Junior.
[13] Nota do entrevistador: Esta opinião, de que "a gente não deve fazer o confronto" parece-me em contradição com outras de GR em que me disse pessoalmente que a fiscalização era muito necessária, que a responsabilidade de uma tradução era muito grande, etc. Seria interessante verificar se Magalhães Junior se lembra destes incidentes e destas opiniões.
[14] Parece-me que GR está referindo-se não a um livro específico mas à totalidade da sua obra. (FC)
[15] Não me ocorre que comparação eu fiz então. (FC)
[16] Não tenho ideia de termos falado deste tradutor mas não deverá ser difícil estabelecer quem seja. A correspondência de GR deve referir-se a ele, e há aqui dados muito concretos: aldeia na Normandia, etc... (FC)
[17] Não compreendo bem esta frase. (FC)
[18] Não tenho qualquer ideia desta passagem e já não me lembro onde ocorre.
[19] Seria interessante localizar estas notas.
[20] O gozo aqui é devido ao fato de eu ter antes combinado com Guimarães Rosa que qualquer honorário seria para mim. Todavia ele era muito insistente nestas coisas e aliás, graças a estas insistências ele conseguiu bons emolumentos para todos nós quando fomos entrevistados na Alemanha pela rádio e pela televisão.
[21] GR passa a citar aqui, quase ipsis verbis o conto aqui referido.
[22] Não me é possível indicar a tradução aqui referida. Pouco mais adiante Rosa menciona as Primeiras Estórias, mas a verdade é que nesta altura, em abril de 1966, estas ainda não tinham sido traduzidas para o inglês. (FC)
[23] Julgo que o texto omitido terá dito, mais ou menos, "Tem de ficar subordinado a uma perspectiva".
[24] Má transcrição. Leia-se "circuntristeza" e não circunstristeza, no conto "A margem da alegria". p. 6. Primeiras Estórias.
[25] GR refere-se aqui ao conto "Substância".
[26] O transcritor colocou aqui um ponto de interrogação possivelmente para indicar que GR deveria ter dito outra e não "outro", outra estória.
[27] Outro ponto de interrogação certamente para indicar que não existe a palavra "transpensar" no nosso idioma. Trata-se de fato um neologismo improvisado neste momento da nossa conversa mas parece-me todavia que GR terá dito Traspensei e não "transpensei" pois que ele revelava uma certa predileção pelo prefixo "tras" para indicar intensidade e transcendência trastanto muito, mais do que, para além do tanto: trastempo, para além do tempo. Aqui, traspensar, indicaria pensar muito e com intensidade.
[28] Outro ponto de interrogação para por em dúvida a propriedade da palavra "desfalava". Parece-me todavia bastante expressiva. Nós dizemos "desfazer" e até "desfabricar" para significar o contrário de fazer e fabricar e , pelo menos a mim, desfalar, sugere-me destruir o que foi dito anteriormente, falar sem dizer nada ou dizer mal o que tinha de ser dito. O fato de GR usar neologismos na nossa conversa, sem que nos apercebêssemos disso é muito importante e revela que estes não são, como ele próprio frisa, creados simplesmente para fazer novas palavras. Estes neologismos têm um crescimento orgânico, fazem parte natural da linguagem e do seu desenvolvimento.
[29] O transcritor considerou a passagem que começa aqui e que continua até ao fim da citação que GR faz da sua estória como "incoerente, sem sentido, por vezes inaudível". Todavia os poucos dados que transcreve corretamente e o fato de eu me referir em seguida a este conto permitem localizar o texto. O conto em questão é "substanciosa", página 156 das "Primeiras Estórias", José Olympio, 3ª edição, Rio de Janeiro, 1967.
[30] A transcrição não faz sentido e modifiquei-a por isso. O transcritor reproduz aqui o seguinte "quando não parte ou não ia ou não segue a música". (FC)
[31] Não posso reprimir um sorriso ao ler esta passagem que me revela como então eu usava todas as oportunidades para impressionar GR com o conhecimento que eu tinha da sua obra. Há trechos aqui em que eu falo de cor, repetindo conclusões do curso que dei por duas vezes em Zurique sobre a obra de GR.
[32] O transcritor apanhou muito bem o riso de GR!
[33] O ponto de interrogação talvez indique que o transcritor não teve a certeza de que GR tenha usado a palavra "maravilhosa".
[34] Não sei de que revista se trata.
[35] Também não me recorda quem seja este senhor.
[36] Toda esta passagem é um mistério para mim e li-a como se referisse a uma outra pessoa e não a mim próprio. Não sei de quem se fala aqui.
[37]O ponto de interrogação é do transcritor, talvez para indicar que tal verbo não existe na nossa língua, ou melhor não existia.
[38] Também não sei de quem se trata mas a identificação não deve ser difícil.
[39] Conheci GR sempre com esta preocupação, digamos mesmo, obsessão pelo tempo. Uma vez interroguei-o sobre isto e ele me deu-me uma resposta contraditória, falando-me do perigo da fonte secar, que então associei ao receio de perder a inspiração. Só mais tarde é que me ocorreu a possibilidade da fonte a que ele se referia ser a fonte da própria vida, representando portanto um pressentimento da sua morte, aliás confirmado por um certo ascetismo das suas atitudes.
[40] GR tinha muito mais razão do que o jovem que então o interrogava. Há coisas muito mais importantes que a literatura, por exemplo, a própria vida. (FC)
[41] Onde estarão estes trabalhos?
[42] Esta interferência parece-me um quanto descabido porque GR acabara de me dizer que agora "estava fazendo, fazendo coisas".
[43] Todo este trecho e bastante misterioso, não me lembra quem me encomendou a pergunta nem por razão eu sugeri a GR que me desse uma resposta vaga.
[44] Depreende-me aqui que alguém entrou no gabinete de GR, talvez o Alexandre Olavo que em seguida é mencionado ou alguém que se referisse a ele.
[45] O transcritor indicou aqui que esta passagem se ouve mal. Eu próprio retoquei uma palavra, inseri outra ali para dar sentido a este trecho.
[46] Almoçamos na companhia de outros diplomatas no restaurante do Itamaraty, se a memória não me atraiçoa, numa sala que dava para um pátio interior.
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Originalmente publicada em:
- Entrevista com João Guimarães Rosa". Revista Humboldt, 18 (37), p. 42-53. Munique, 1978.


João Guimarães Rosa

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