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segunda-feira, 2 de novembro de 2015
Los Hermanos e a geração Y
Texto publicado em 2014 na resita Piauí na sessão questões musicais. Com a banda está em turnê, o texto vem à calhar.
Los Hermanos e a geração Y
POR Paulo da Costa e Silva, Zuim Podcast
Tenho lido na internet alguns textos falando sobre a “geração Y” – a
geração daqueles que nasceram entre o fim da década de 1970 e meados dos
anos 1990. Em geral são textos que adotam o ponto de vista dos pais
desses “novos adultos”. A julgar pelo que vem sendo escrito, a geração Y
anda meio infeliz. O problema estaria, sobretudo, na relação com a
esfera do trabalho, na inserção profissional que é via de acesso para o
mundo adulto. Grosso modo, os textos pintam um retrato semelhante desses
“novos adultos”, que é mais ou menos o seguinte: jovens mimados, filhos
de uma classe média confortável, com excelente formação e uma
auto-estima inflada; jovens que nunca tiveram que lutar por nada e que
se julgam demasiadamente especiais, esperando, por conta disso, que as
vitórias no mundo lá fora (leia-se, no mercado de trabalho) sejam
relativamente fáceis, como se fossem um desdobramento natural de sua
genialidade. Jovens imbuídos de imensa ambição, mas que não possuem a
disposição necessária para enfrentar eventuais sacrifícios. Apenas um
desejo de fôlego curto, infantil, típico de uma geração que se acostumou
a receber tudo de mão beijada.
Enfim, seria mais ou menos esse o perfil psicológico da geração Y, a
causa de seu mal-estar. O antídoto, da parte dos pais, é claro que nem
água: menos protecionismo; é preciso deixar os filhos “aprenderem com a
vida”; deixar que fiquem livres para “enfrentar o mundo”. E aqui reside o
ponto fraco desses argumentos: eles falham surpreendentemente ao não
indagar sobre que “mundo” é esse que os Y’s devem enfrentar. Em outras
palavras, eles retiram a geração Y do contexto histórico no qual está
inserida, reduzindo a discussão à esfera psicológica das relações
familiares. Como se fosse a mesma coisa iniciar a vida adulta nos anos
1970 ou nos anos 2000. Tudo se torna uma questão de força pessoal diante
dos desafios da vida. Ao perder de vista o contexto maior, questões que
são coletivas passam a ser sentidas como sendo puramente individuais.
Ao mesmo tempo, retira-se o solo real sobre o qual as expectativas e
sonhos da geração Y se erguem. A questão passa a ser exclusivamente a de
saber se o Y é suficientemente competente ou não; se está ou não à
altura das imposições cada vez maiores do mercado de trabalho. Se é
eficiente e competitivo. Se tem condições de ser um vencedor.
Me parece que uma banda como o Los Hermanos foi capaz de captar com sutileza o estado de espírito dessa geração. Álbuns como Bloco do eu sozinho e Ventura
abrem verdadeiras janelas para os anseios e dilemas dos filhos da velha
classe média, agora vistos sob sua própria perspectiva, e não mais pelo
crivo geracional dos pais. Tentarei, a seguir, destacar algumas dessas
janelas.
1. Não há como entender a geração Y sem levar em conta as mudanças do
sistema capitalista nos últimos 20 ou 30 anos. Iniciar a vida adulta
como trabalhador nos anos 2000 é sentir na carne o resultado de uma
desvalorização do trabalho iniciada em meados dos anos 1970 e levada a
cabo com intensidade crescente até os dias de hoje. É sentir-se
continuamente ameaçado pela possibilidade (já naturalizada) de “não
encontrar um lugar” no mercado de trabalho; pelo sentimento de ser
altamente “substituível”. É sentir a pressão de um sistema que produz
cada vez mais ansiedade com o tempo, no qual estamos continuamente
correndo atrás não sabemos bem do que, num mundo que estimula e banaliza
a competição, a “luta por vagas”, apoiando-se, para isso, no mito do
vencedor. Várias canções dos Hermanos falam diretamente contra essa
lógica, relativizando o mito do vencedor. Falam para aqueles que não
estão mais dispostos a (ou não são capazes de) topar o jogo, e que
tentam afirmar outros valores diante dele. Coloca-se contra “quem acha
que perder é ser menor na vida”, contra “quem sempre quer vitória e
perde a glória de chorar”. Numa sociedade cada vez mais dividida entre
vencedores e perdedores (e na qual passou a ser legítimo que o
“vencedor” leve tudo), o mercado de trabalho se tornou, na descrição de
Richard Sennett, “uma estrutura competitiva que predispõe ao fracasso
grandes números de pessoas educadas”. É para esses fracassados
“educados” – de hoje e do futuro -, a geração Y, que se dirige a música
dos Hermanos.
2. Muitas canções dos Hermanos estabelecem uma conversa informal com o
ouvinte usando fórmulas como “senta aqui, que hoje eu quero te falar”.
São conselhos que criam um espaço de cumplicidade, um sentimento,
talvez, de irmandade, um pouco como o próprio nome da banda já indica.
Letras que apontam para as limitações que se colocam no caminho de
determinado ideal de performance. “Não há ninguém capaz de ser isso que
você quer / vencer a luta vã e ser um campeão”, canta mansamente a voz
anasalada de Marcelo Camelo para um personagem imaginário visivelmente
abatido. Não se sentindo à altura do ideal de performance, o “eu” não
coloca o modelo em questão, mas retorna a agressividade, a culpabilidade
e a vergonha sobre si mesmo: se não consigo realizar meus objetivos é
porque não presto, não estou à altura, sou nulo. Vem daí a emergência
dos novos sintomas do stress, esgotamento, e, sobretudo, a depressão.
Numa canção como Tá bom, sente-se a presença de um amigo que
tenta amparar certa perda de sentido, uma falência do desejo – “você
precisa reagir, não se entregar assim, como quem nada quer”. A mensagem,
contudo, não se confunde com o costumeiro “você também é capaz”; é
antes um reconhecimento dos limites que busca instaurar uma nova
perspectiva, mais adequada às medidas do sujeito: “junto as mãos ao meu
redor, faço o melhor que sou capaz só pra viver em paz”. A
mensagem quer tirar o sujeito de uma posição atormentada diante dos
próprios limites; é preciso ir com mais calma, calibrar melhor as
expectativas e ambições, saber olhar para “as coisas casuais”, não se
deixar escravizar por ideais inatingíveis, pois só assim será possível
encontrar a paz.
3. O ideal de sucesso é frequentemente atacado pelos Hermanos a
partir da descrição de personagens que parecem persegui-lo a qualquer
custo. O sucesso não passa de uma aparência, uma máscara social que deve
ser atravessada pelo olhar atento, crítico. “Olha lá, quem vem do lado
oposto vem sem gosto de viver”. O “cara estranho” da canção, típico
exemplo do “homem motivado”, cuja vida não passa de uma exaustiva busca
por aprovação e auto-estima, e que, no contexto cordial brasileiro,
“finge não haver competição” – como se estivesse participando de uma
dinâmica de grupo em alguma empresa – mira-se em exemplos falsos da
televisão. Em outra música, que não foi gravada pelos Hermanos mas que
bem poderia ter sido, Camelo revela a infelicidade e a fragilidade de
quem se diz “um cara valente”. Um rapaz “que sem ter proteção foi se
esconder atrás da cara de vilão”. Outro personagem, um rapaz que se
apresenta “tão sem defeito”, está apenas “se exibindo pra solidão”. São
exemplos que indicam a maneira como ideais nobres – de bravura, coragem e
luta – parecem ter sido usurpados por uma lógica competitiva que afasta
o sujeito não apenas dos outros, mas também de si mesmo; que o aliena
do que é realmente relevante na vida. A música dos Hermanos expressa o
desejo não de ser um campeão, mas de pular fora dessa lógica. Há nela
uma “vontade de comunidade” que passa a definir uma linha de separação
entre nós e eles – “pra nós todo amor do mundo, pra eles o outro lado”.
4. O problema é que o mundo parece demasiadamente intrusivo. Ele
exige cada vez mais agressividade, impõe continuamente provações, gera
uma condição de avaliação permanente, em infindáveis processos de
seleção. Um mundo no qual a urgência foi banalizada. Um mundo “que anda
hostil. O mundo todo é hostil”. As canções dos Hermanos expressam
constantemente um desejo de “ser deixado em paz”. Tentam recuperar uma
calma perdida. A calma “daquele cara” viria, justamente, do fato de que
ele “não entende de ser valente”, de que “não sabe ser melhor” e nem
“mais viril”. Nessa canção (De onde vem a calma), a voz de
Camelo canta a resistência insignificante de um sujeito esmagado por
demandas que vão contra suas aspirações de serenidade. Ao mesmo tempo,
ele sabe que é preciso não ceder. Ao heroísmo da performance
contrapõe-se o heroísmo da resistência. A resistência é um fiapo
solitário de voz, cantada na fragilidade aguda do falsete de Camelo. O
canto quebradiço de quem se recusa a ser moldado por um mundo que pouco
lhe diz respeito.
5. É também evidente a vontade de fuga, que se manifesta sobretudo em algumas canções de Rodrigo Amarante, como no Último romance, por exemplo. Mas até essa fuga é uma fuga que quer levar a “casa numa sacola”. Trata-se de algo muito diferente do “go for it”
que caracteriza uma parte considerável da retórica do nosso tempo.
Sennett escreveu que cada vez mais pessoas enfrentarão diariamente o
risco no novo capitalismo flexível, e de que há uma tendência ideológica
que transforma tal necessidade em virtude, como se fosse este o signo
de uma vida intensa. Não há, na música dos Hermanos, qualquer tipo de
louvação ao risco. Pelo contrário: muitas vezes o que encontramos é a
vontade de retorno e de permanência, a vontade de voltar ao porto, que
vem junto com o lamento por mudanças indesejadas. E se há uma diferença
profunda entre os Hermanos e os tropicalistas seria justamente essa: a
de colocar novamente a mudança sob suspeita. A teimosia em avaliá-la de
modo direto, subjetivo e parcial – do ponto de vista concreto de um
sujeito sentimental. As coisas mudam, sim, e não raro, a depender do
ponto de vista, mudam para pior. Um lamento difuso – talvez o lamento de
uma geração que não chegou a se sentir como Sujeito da história –
perpassa algumas canções dos Hermanos. Daí títulos como O pouco que sobrou,
ou versos de uma lamúria leve, mas não menos verdadeira, como “veja
você, quando é que tudo foi desabar”. “O vento que entortou a flor” (um
verso pós-bossa nova) e que “passou também por nosso lar” (“eu sei, é o
amor que ninguém mais vê”) é de algum modo apaziguado com a notícia do
retorno ao “bloco da família”. Mas nem isso apaga o traço de melancolia
na música dos Hermanos. A melancolia de quem sente ter perdido o lugar.
6. Quando os grandes projetos coletivos se esvaem, o amor se torna a
moeda forte da felicidade. É surpreendente notar o conservadorismo
afetivo das canções dos Hermanos. Não há qualquer consideração pela
abertura sexual dos anos 1960, pelo campo de experimentação que ela
representou – simplesmente é como se nada disso tivesse existido. Camelo
pode mandar a mulher abrir as portas “do castelo que construí pra te
guardar de todo o mal”, aos berros de “eu sou teu homem, viu!”, ou
louvar os “braços castos” de outra donzela. Amarante expõe a amplidão de
seu sentimentalismo e de sua intransigência em versos como “eu só
aceito a condição de ter você só pra mim!” Parece que a hostilidade do
mundo, sua falta de garantias e de horizonte futuro (“e agora o amanhã,
cadê?), precisa ser compensada por uma segurança afetiva apoiada em
modelos há muito consolidados – a família, os velhos códigos do amor
romântico – e também por uma sede de transcendência – que no fim se
torna a única fuga viável desse mundo. “É preciso força pra sonhar e
perceber que a estrada vai além do que se vê”.
7. Os Hermanos não se sentem compelidos a afirmar ou louvar o
presente – nem precisaria, a publicidade já faz isso mais do que o
suficiente; são antes os cantores das feridas do nosso tempo, do
descompasso entre as demandas da atualidade e os anseios profundos do
sujeito. Nisso se aproximam, talvez, da Legião Urbana de Renato Russo.
Mas há um sentido maior de isolamento nas canções dos Hermanos. Eles
cantam o Bloco do eu sozinho (título do segundo álbum da
banda); falam de um sujeito que samba “bambo e só”. O filtro subjetivo,
individual, parece ser o único possível, e é difícil imaginar os
Hermanos falando em nome de uma geração, como havia feito a Legião em Geração coca-cola.
Ao mesmo tempo, há também uma recusa (ou incapacidade) em apontar as
origens da insatisfação, ou até mesmo em pintar um quadro realista da
situação. Tudo parece mais vago, e até os anti-exemplos (o “cara
estranho”) tendem a ser diluídos em um simples “nós” e “eles” na
transição do terceiro para o quarto álbum da banda. A passagem do Ventura (2003) para o 4 (2005)
também simboliza, de certo modo, um mergulho mais fundo no subjetivismo
e um maior distanciamento do real. Tudo isso se traduziu num parcial
abandono das convenções da canção feita para o formato do rádio – com
forma legível, refrões bem definidos e duração padronizada – e na adoção
de procedimentos mais erráticos, de menor definição estrutural.
Procedimentos que de algum modo mimetizam um estado de deriva – como o
de um barco solto no mar – e que deram origem ao que Zé Miguel Wisnik
definiu como “canção expandida”, com suas inesperadas “lagoas sonoras”,
sua temporalidade finalmente emancipada da urgência do presente. É como
se o mundo não mais oferecesse qualquer interesse, e o indivíduo tivesse
se recolhido inteiramente dentro de si, como um caramujo. Há algo
profundamente romântico nesse movimento melancólico rumo à
interioridade. E certamente ele está apoiado sobre a volta da melodia
como principal parâmetro de sentido da canção – Camelo talvez seja o
principal melodista de sua geração -, numa diferença marcante com o peso
da palavra e do ritmo no rap, com sua vontade concreta de
nomear e atuar sobre o real. “É, pode ser que a maré não vire / pode ser
do vento ir contra o cais / e se já não sinto os teus sinais / pode ser
da vida acostumar”. As músicas dos Hermanos nos fazem indagar
sobre o lugar da melancolia no mundo de hoje – sobre a diferença
perigosamente mínima, até do ponto de vista das palavras, entre resistência e desistência. Se o Ventura ainda era um disco conectado com o pop, 4 parece um exílio que anuncia o fim melancólico da própria banda.
8. “A gente quer ver horizonte distante”. “Dá-me luz, ó Deus do
tempo, dá-me luz”! Quem teve a chance de ir aos shows dos Hermanos sabe
que a banda existia na media em que havia um público. As duas instâncias
caminhavam juntas, em rara simbiose. Pessoas cantando da primeira à
última música, em total identificação. Havia nos concertos dos Hermanos
algo da “efervescência coletiva” que Durkheim associava à experiência
coletiva do sagrado, uma atmosfera de comunhão religiosa. Não deixa de
ser curioso que ela tenha sido alcançada pela concentração na
experiência individual, no Bloco do eu sozinho, e não pela
negação desta. Que ao descer ainda mais no indivíduo se tenha tocado em
um fundo comum, capaz de fazer com que, pelo menos durante os shows, uma
parcela expressiva da juventude de classe média rompesse o isolamento e
voltasse a se conectar em irmandade. E que de repente uma geração tenha
passado a ter uma ideia mais clara de si.
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