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O Enem e a falácia da “doutrinação”
Lembrou na edição desse domingo, 25 de outubro, a
insuspeita jornalista econômica Miriam Leitão, que nesses 30 anos, avançamos em
três áreas importantes: democracia, estabilidade e inclusão. E que voltar atrás
é inaceitável.
No sábado, dia 24, a prova de Ciências Humanas do
Enem, cujas questões são formuladas por um pool de professores das 57
universidades públicas do país, deu um banho de democracia, estabilidade e
inclusão, elencando para os jovens postulantes a uma vaga no ensino superior,
questões sobre a terceira revolução industrial e a desterritorialização da produção
( o que lembra o quanto é bem vinda a multietnicidade dos produtos ao mesmo
tempo em que renascem os discursos racistas quanto a pessoas), sobre a moda dos
selfies e o narcisismo epidêmico das sociedades urbanas contemporâneas, sobre o
desencantamento e a racionalização em Max Weber, sobre a precaução necessária
com o transgênicos, sobre a luta histórica pela igualdade de gêneros, sobre os
condicionamentos sociais em Mannheim, sobre as guerras e os riscos aos
patrimônio material, sobre a proteção ao meio ambiente, sobre a crise da água,
sobre a superação da visão mítica do mundo nos pré-socráticos, sobre a
alteridade ( em uma bela questão lembrando a importância de se colocar no lugar
do outro para avaliar nossas convicções), sobre os excessos do Estado nos
regimes ditatoriais, sobre os riscos da espionagem via internet, sobre a
multiperspectividade do passado ( ao apresentar dois textos sobre o mesmo fato,
a Guerra de Canudos, mostrando a importância do cotejamento das fontes), sobre
o papel simbólico e a extensão social da Abolição, sobre o papel de apoio (
aparentemente controverso) das colônias africanas às suas metrópoles na segunda
guerra mundial, sobre o papel dos movimentos sociais no aprofundamento da
democracia brasileira, levando-a para além da mera participação eleitoral,
sobre o conceito de Estado em Hobbes, sobre a importância das imagens no
cenário político brasileiro, sobre o papel dos intelectuais na formação do
mundo ocidental, sobre a ágora ateniense, sobre a globalização e sua crítica,
sobre o problema da erosão nos rios, sobre a concentração urbana no Brasil,
sobre o Código eleitoral brasileiro de 1932 e seus avanços, sobre o
endividamento brasileiro no regime militar que fundamentou o chamado “milagre
brasileiro”, sobre o pan-africanismo, sobre a construção da memória por meio da
arte ( e como ela pode servir a propósitos que não são a verdade dos fatos),
sobre os sofistas gregos, sobre o conceito de “homem cordial” em Sérgio Buarque
de Holanda, sobre as novas formas sustentáveis de explorar a Amazônia, sobre os
biomas brasileiros e os problemas que apresentam, sobre as relações entre
trabalho e avanço tecnológico, sobre o conceito de Maioridade em Kant ( por
meio de uma bela citação de Paulo Freire), sobre os riscos dos agrotóxicos nos
alimentos, sobre a dificuldade de os europeus aceitarem a cultura ameríndia ao
longo da colonização, sobre o confronto do conceito de socialismo e o
capitalismo de Estado da China contemporânea e, finalmente, sobre a crise
financeira mundial.
Como se pode ver, a prova de Ciências Humanas do
Enem abordou, com largo espectro, temas políticos, econômicos, sociais,
culturais, tecnológicos, filosóficos, educacionais, regionais, nacionais e
globais, com competência e precisão, utilizando textos e imagens de autoridades
e/ou personalidades conhecidas e respeitadas em suas áreas de atuação.
A opção da prova do Enem é claramente a de uma
prova cidadã, preocupada com a seleção de jovens capazes de ler, interpretar e
se posicionar sobre temas fundamentais, relevantes e urgentes da
contemporaneidade.
E a pergunta que resta é: onde está a
“doutrinação?” Onde está o viés de “esquerda”? Por acaso os temas tratados na
prova não se coadunam com as importantes questões da nossa democracia? Por
acaso não é importante que jovens conheçam e debatam essas questões?
O que fica cada vez mais claro é que a falácia da
“doutrinação” esconde o desejo da censura e do autoritarismo, travestido de
peroração voltado para os que não cuidam de ver com seus próprios olhos e
escutar com seus próprios ouvidos.
Que este artigo funcione como um convite para que
os leitores e leitoras leiam a prova, analisem suas questões, avaliem as
alternativas e só depois formulem seus julgamentos. Não ver e não gostar, não
ler e condenar é o caminho mais rápido e fácil para o retrocesso. E quem
REALMENTE quer o retrocesso?
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