"MasterChef Júnior", a adultificação das crianças e o fim da vergonha
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O episódio do assédio sexual através das redes sociais sofrido pela menina Valentina na primeira edição do reality televisivo “MasterChef Júnior” é a
ponta do iceberg de um movimento mais profundo e perigoso: o fim da vergonha
como a barreira que continha a sedução pela barbárie e a adultificação das
crianças pelas mídias. Sexismo, ódio, assédio sexual e intolerância que invadem
as redes sociais lembram as sombrias profecias de escritores libertinos do
século XVIII de que um dia as perversões privadas se tornariam virtudes
públicas. E as crianças, transformadas em mini-adultos em um programa de final
de noite onde correm contra o tempo segurando o choro, são o reforço
motivacional para os telespectadores acordarem no dia seguinte e repetirem as
mesmas situações na fábrica ou no escritório.
Os leitores devem
já conhecer a opinião desse Cinegnose
em relação ao reality show MasterChef da Band: é um bullying gastronômico – um
programa de final de noite com o objetivo de reforçar subliminarmente a
ideologia pela qual seremos regidos quando acordarmos no dia seguinte para
trabalhar: o princípio do desempenho.
Correr contra o
tempo em busca da eficácia, eficiência, produtividade, mérito e cumprimento de
metas sob as chibatadas de algum superior do tipo gerente, diretor, gestor etc.
MasterChef transforma isso em diversão ao nos deliciarmos em ver pessoas
angustiadas e esbaforidas correndo contra o relógio sob gritos e olhares
inquiridores de chefes de cozinha. Igual o que acontecerá com o telespectador
no dia seguinte na vida real na fábrica, escritório ou em outra empresa
qualquer.
Algo assim como o observado pelo filósofo Theodor Adorno em relação ao
riso sadomasoquista ao vermos o Pato Donald sendo mais uma vez demitido pelo
Tio Patinhas com um chute no traseiro: riso nervoso porque no fundo sabemos que
um dia passaremos por aquilo.
Pois agora a franquia MasterChef quer ir além: não basta apenas reforçar
o princípio do desempenho no presente, em adultos telespectadores
sadomasoquistas. Agora o programa tem que pensar no futuro: as crianças.
Elas também devem conhecer o futuro que as aguarda: correr contra o
tempo, competição, facas, panelas de pressão e... bullying e assédio sexual.
MasterChef Júnior é mais um produto da franquia que estreou a semana
passada na Band onde vinte crianças entre nove e treze anos participam de uma
competição culinária.
Enquanto as crianças em suas bancadas corriam contra o relógio (mostrando
os ponteiros em closes dramáticos sob uma trilha de suspense ao melhor estilo
do clássico western Matar ou Morrer
com Gary Cooper) e seus pais torciam observando a tudo do alto de um mezanino,
nas redes sociais os competidores mirins era alvos de comentários adultos
elogiosos e outros nem tanto.
Valentina, menina de 12 anos, tornou-se alvo de comentários de teor
sexual. Alguns chegando a apologia ao estupro. Infelizmente para Valentina seu
refinado ravióli recheado com gema de ovo mole não foi o que a levou ao topo do
Trending Topics no Twitter, mas sim a chuva de comentários do calibre de
“panela nova é que faz comida boa”, “Valentina: se tiver consenso é estupro?”
ou “#valentinaplayboy”.
“Novinha”, “vagabunda”, “já aguenta” foram os “elogios” mais “leves” de
homens em perfis do Facebook e Twitter.
Duas questões chamam a atenção nesse triste episódio: a tendência atual
da transformação das perversões privadas em “virtudes” públicas e a
adultificação midiática das crianças.
Vergonha e barbárie
Freud afirmava de forma sombria que a civilização não podia existir sem
o controle dos impulsos, principalmente o da agressão e da satisfação imediata.
Para ele, andamos no fio da navalha do perigo constante de sermos possuídos
pela barbárie: a violência, a promiscuidade e o egoísmo. A vergonha é um dos
principais mecanismos para manter a barbárie à distância: o temor em praticar certos
atos ou manifestar certos pensamentos. Tornam-se misteriosos e temíveis pelo
fato de serem continuamente escondidos das vistas do público.
Recentemente o escritor e semiólogo italiano Umberto Eco acusou as redes
sociais de “terem dado o direito de falar a uma legião de idiotas”. Talvez seja
mais do que isso: as redes sociais vêm anulando o mecanismo civilizatório da
vergonha – ódio, intolerância, racismo, sexismo, assédio e perversões tornam-se
públicas, não mais como sintomas patológicos mas agora como “opiniões”,
“haters”, “politicamente incorretos” ou, o que é pior no caso brasileiro,
resistências contra a “demonização” do sexo imposta por uma suposta conspiração
chefiada por “feminazis”, a “ditadura gay” e a ideologia do politicamente
correto das Esquerdas.
Certa vez Choderlos de Laclos, autor do romance Ligações Perigosas, do século XVIII, afirmou que um dia as
perversões privadas se tornariam virtudes públicas – e ironicamente a profecia
realiza-se no sofisticado ambiente tecnológico da Internet. A barbárie que
sempre flertou com a civilização e o psiquismo de cada um de nós ganha um
inusitado impulso eletrônico-digital.
Adultificação da criança
E relacionado a isso temos o fenômeno da adultificação da criança. TV,
cinema e, mais tarde, YouTube criaram uma dinâmica cultura da celebridade que
substituiu o antigo modelo paterno de ego ideal. Os pais modernos sempre
sentiram que a mídia superou há muito a família como agência socializadora. Por
isso, tornar o filho em imagem tornou-se o único legado que os pais podem
deixar.
Já foi o tempo em que a mãe orgulhosa mostrava o bebê e a sua foto – o
book de fotos era a única memória familiar palpável. Mais tarde, a obsessão do
filho fazer parte de books de agências de cast de filmes publicitários. Hoje, a
chance de virar uma celebridade em um reality júnior qualquer.
A proletarização dos pais e a vida familiar cada vez mais rarefeita
fizeram os filhos serem expostos cada vez mais cedo ao mundo externo, desde a
creche nos primeiros meses de vida até chegar ao único legado da paternidade
ausente: transformar o filho em imagem e celebridade.
Mas a celebridade tem um preço, como nos mostra MasterChef Júnior: ser um pequeno adulto (um chefe mirim que já
enfrenta o desafio de criar um prato com barriga de porco e manipular facas)
exige pagar a moeda de cumprir o princípio de desempenho – ser um modelo de pequeno
adulto para o deleite dos próprios adultos que veem neles o conforto resignante
de que a vida de diariamente correr contra o tempo sob a chibata de um chefe
sempre foi assim e assim será para sempre.
Enquanto na primeira edição do programa os mini-chefes corriam contra o
tempo esbaforidos, angustiados e segurando o choro, do mezanino as mães gritavam
histéricas: “enxuga os olhos e vai!”, “Não chora!”... A educação pela dureza
como modelo que legitima a própria vida dos adultos – as crianças passam por um
jogo que é o microcosmo do futuro que lhes aguardam.
Por isso as crianças adultificadas são as novas celebridades dos adultos.
Como toda celebridade, tornam-se objeto ao mesmo tempo de amor e ódio (como
comprovou o assassinato de John Lennon por um fã em 1980) – por um lado são
admiradas como modelos meritocráticos de sucesso e, por outro, odiadas por
lembrar que segurar o choro sob o julgamento do relógio e do olhar do superior
é o destino de todos os telespectadores quando acordarem no dia seguinte.
Talvez aí esteja a origem psíquica de todo ódio e assédio sexual sofrido
pela pequena Valentina – ao mesmo tempo desejada e desprezada. Como todas as
celebridades, não são admiradas mas invejadas. Objetos de transferência de uma
carga de amor e desejo (quem não quer transformar-se em celebridade para supostamente
fugir da mediocridade cotidiana?) e também de raiva e vingança porque, afinal,
o choro que Valentina teve que segurar diante do fogão é um alusão do que
aguarda cada telespectador quando acordar no dia seguinte.
Adultificados, desde cedo devem ser expor à pressão da competição e ao
assédio sadomasoquista dos telespectadores. E os pais, ausentes e substituídos
pela mídia, nada têm a dizer além do: “enxuga os olhos e vai!”...