segunda-feira, 18 de maio de 2015

Trovoa - Maurício Pereira


Sempre me interessei mais por álbuns do que canções. Escutar apenas uma canção isoladamente para mim sempre me pareceu muito superficial para saciar o meu interesse. Dessa forma, me relaciono com a música sempre lembrando de álbuns de artistas/bandas antes mesmo de lembrar de suas canções. The Dark Side off the Moon do Pink Floyd, Transa do Caetano Veloso, Abbey Road dos Beatles, Construção do Chico Buarque, Aqualung do Jethro Tull, Cartola do próprio Cartola, Houses Of The Holy do Led Zeppelin, Caipira do Rolando Boldrin, Harvest do Neil Young, Clube da Esquina da dupla Milton Nascimento e Lo Borges, Eletric Muddy do Muddy Waters, CéU, o disco de estreia da Céu, Ventura do Los Hermanos, Nó na Orelha do Criolo, Ok Computer do Radiohead, dentre tantos outros memoráveis discos que me falha a memória, eram por mim sempre lembrando antes mesmo das canções existentes nessas obras.
A audição dessas obras para fazerem mais sentido e me tocarem mais, sempre devem ser executadas na ordem correta em que as faixas foram dispostas. Principalmente em discos conceituais, a ordem original das faixas sempre faz muito sentido, mas mesmo nos álbuns em que aparentemente não exista um conceito principal, os arranjos a fase do artista/banda sempre interferiu na ordem das canções e sempre me sinto mais satisfeito em ouvir um álbum na íntegra e na ordem original.
Creio que por tais motivos, as coletâneas geralmente não me atraiam. Nem de um artista/banda só, ou de vários. Talvez em eventos festivos, em reuniões sociais, onde a musica é só som ambiente, tais seleções façam sentido para mim, mas para minhas audições, raramente gosto de ouvir coletâneas. Não me soa bem ouvir uma música de um álbum e outra de uma fase diferente aparecesse na sequencia.
Da mesma maneira, nunca fiquei tão preso assim a canções individuais. Como já dito, geralmente, tenho os meus discos preferidos, não as minhas canções preferidas. Porém algumas canções conseguem transcender os seus discos e por sua grande qualidade tornarem-se maiores que os álbuns em que originalmente foram lançadas.
De tempo em tempo alguma música solta fica povoando o meu imaginário, tocando incessantemente na minha rádio mental, assim procuro várias versões dessas músicas no youtube e as ouço várias vezes. Canto de Ossanha da dupla genial Vinícius de Moraes e Baden Powel constantemente me vem a minha cabeça, já tendo tornado assim na minha memória afetiva, maior ainda do que seu álbum original, o brilhante Afrosambas. O violão genial de Baden, a letra épica de Vinícius, o coro de vozes, é arrepiante.

Outra canção que para mim também funciona bem sozinha, sem a necessidade de escutar todo o álbum em que foi originalmente gravada é a linda Bohemian Rhapsody da banda britânica Queen, do saudoso vocalista Freddie Mercury. Suas variações de ritmo, seu lindo arranjo, sua letra e o solo de guitarra transforma a canção em uma obra maior do que o seu álbum A Night at the Opera.
Também adoro ouvir a canção Cortez the Killer do álbum Zuma do Neil Young e sua Crazy Horse. A viagem musical começa com um extenso solo de guitarra que se prolonga em um blues psicodélico e sujo, precedendo a bela letra fantasmagórica que relata a chegada de Cortez no mundo novo, com seu rastro de destruição. Poderia me lembrar de outras músicas, mas o texto que já está longo ficaria ainda maior.
Na semana passada, zapeando pelas redes sociais, um amigo postou uma versão da música Trovoa (Maurício Pereira), sendo interpretada por Cida Moreira e Arthur de Faria. Já conhecia e gostava muito dessa canção, tendo a conhecido na interpretação do grupo Metá Metá do disco homônimo.

Essa faixa já era para mim o ponto alto do excelente disco citado. Acho o trio Metá Metá do violonista Kiko Dinucci, a cantora Jussara Marçal e o saxofonista/flautista Thiago França a banda mais interessante surgida atualmente. Ouvi várias vezes o seu álbum de estreia, considerando um dos melhores do novo século.
A versão do grupo é linda. A cantora Jussara Marçal a interpreta de uma maneira muito emotiva, até mesmo porque a letra da canção é muito emotiva. O arranjo feito pela banda conseguiu dar um ar de sofisticação muito grande. O violão de Kiko, tocado de uma maneira bem peculiar é de muito bom gosto e funciona muito bem, por fim, a flauta de Thiago da uma leveza que o caso de amor relatado pela letra pede.
Porém foi ao ouvir a versão de Cida e Arthur que a música começou a martelar na minha cabeça de uma maneira intensa. Assim procurei outras versões da música. A primeira foi a original do compositor, talvez a mais simples que encontrei, mas não menos comovente. Encontrei também a versão do autor cantando em conjunto com a cantora Jussara Marçal, no especial de fim de ano da TV Cultura, muito bonita.

Assim, fui reparando nos detalhes da canção em suas diferentes versões que encontrei. A primeira coisa que me impressionou foi a beleza arrepiante da letra que conta como um amor comum pode ser bastante épico e significativo para quem o vive. Um romance despido de glamour e idealizações pode ser tão belo como uma história de cinema.
“Minha cabeça trovoa/ sob meu peito te trovo/ e me ajoelho/ destino canções pros teus olhos vermelhos/ flores vermelhas, vênus, bônus/ tudo o que me for possível/ou menos/ (mais ou menos)/ me entrego, ofereço/ reverencio a tua beleza/ física também/mas não só/ não só”(...)
O autor já começa demonstrando o impacto que a sua amada tem em sua cabeça, usando o trovão, grande força estrondosa da natureza para demonstrar o estado que sua mente fica ao entrar em contato com sua musa.
Chama a atenção a métrica irregular dos versos que da uma intensidade maior ao romance vivido pelo eu lírico da letra. Em certos momentos, o canto de ritmo irregular se parece com um transe, dando um efeito muito poderoso.
No decorrer da música, a letra vai descrevendo fatos corriqueiros dos personagens, mas que da maneira descrita, revela uma grande historia de amor. “(...) famílias assistem tevê (...) eu fumo um marlboro na rua como todo mundo e como você (...)”, “(...)batucando com as unhas coloridas/ na borda de um copo de cerveja/ resmunga quando vê/ que ganha chicletes de troco (...)”, o eu lírico demonstra encantamento por sua amada em atos mais banais que ela pratica.
E o autor continua a letra com belos versos como: “(...) o aço fino da navalha me faz a barba/ o aço frio do metrô/ o halo fino da tua presença (...)”! Ou a mais forte de todas: “(...) se você for embora eu vou virar mendigo/eu não sirvo pra nada (...)”!
O desejo erótico também é bem descrito: “(...) e o simples ato de cheirar-te/ me cheira a arte/ me leva a Marte/ a qualquer parte/ a parte que ativa a química/ química (...)”!
A relação é tão intensa que reforça uma série de convicções do eu lírico: “(...) onde soem os cânticos/ convicção monogâmica/ deslocamento atômico/ para um instante único/ em que o poema mais lírico/ se mostre a coisa mais lógica (...)” e subverte aquilo que na sua concepção seria mais adequado.
Na última estrofe, o eu lírico termina com uma grande demonstração de carinho e amor, fechando a música magistralmente: “(...) e se abraçar com força descomunal/ até que os braços queiram arrebentar/ toda a defesa que hoje possa existir/ e por acaso queira nos afastar/ esse momento tão pequeno e gentil/ e a beleza que ele pode abrigar/ querida nunca mais se deixe esquecer/ onde nasce e mora todo o amor”!

A música é linda! Na versão do Metá Metá, um solo de flauta fecha a faixa, dando ainda mais beleza letra tão lírica.
Depois de ter ouvido várias e repetidas vezes essa canção durante a semana, em diferentes versões, tenho a sensação que é a mais bonita música brasileira lançada nesse século (de acordo com o site do Mauricio Pereira foi lançada em 2007). Mesmo tendo concorrentes de peso como Grains de Beaute do álbum Vagarosa da, Céu, Cara Estranho do Los Hermanos do disco Ventura, Não Existe Amor em SP, do Nó na Orelha, do Criolo, Sinhá do disco Chico, do monstro consagrado Chico Buarque, 6 minutos do disco Certa Manhã Acordei de Sonhos Intranquilos, do Otto, ou mesmo Ensolarada, do disco de estreia da banda mineira Graveola e o Lixo Polifônico, além de outras belas gemas que não me lembro no momento.
A canção tem vários pontos altos, mas talvez pelo fato de que eu me encontro tão sozinho atualmente, deve ter colaborado para a minha admiração pela música!

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