Obs: do blog Jotabê Medeiros
Geraldo
Vandré em sua última aparição, em março de 2014 (foto: Jotabê Medeiros)
O biógrafo Vitor Nuzzi seguiu os passos de Geraldo Vandré por mais de uma década, e o resultado é o livro 'Uma Canção Interrompida', edição do próprio autor. Somente 100 exemplares foram impressos
Durante 8
anos, o jornalista e escritor Vitor Nuzzi enviou 8 cartas para Geraldo Vandré.
Ele não respondeu a nenhuma. Um dia, já em processo de escrever uma biografia
do artista, conseguiu seu número de telefone e ligou para o cantor. Vandré
atendeu e perguntou: “Vitor de quê?”. Ao ouvir a resposta, disparou: “Eu não
tenho interesse nas coisas que você anda fazendo”.
“Ele
sabia que eu estava escrevendo!”, conclui o jornalista, com um tom entre o
lisonjeado e o preocupado. Desde então, o autor tenta ligar para Vandré,
geralmente para parabenizá-lo, em seus aniversários. O músico, para não fugir à
lenda, jamais atende. Mas não foi sempre assim. Em 1985, quando Nuzzi estava no
segundo ano de Jornalismo na Metodista, descobriu o telefone da Sunab, onde
Geraldo Vandré às vezes dava expediente como funcionário público. Passou
a ligar para aquele número. “Eu queria falar com o dr. Geraldo Pedrosa”,
consultava, insistentemente. Um dia, conseguiu – o próprio músico atendeu o
telefone. “Sou estudante, tenho interesse em falar com o sr. para um trabalho
de faculdade”. Vandré foi solícito e lhe disse: “Venha à minha casa”.
O
jornalista foi. Entrou finalmente na residência da rua Martins Fontes, em São
Paulo, que ainda hoje pertence a Vandré (atualmente, ele passa mais tempo em
Teresópolis, onde vivia a mãe, morta recentemente aos 95 anos). Conversaram, o
cantor foi amável, um contato breve. Nuzzi continuou interessado na história (e
nas lacunas da história) daquele artista de trajetória tão peculiar.
“Quando
ele completou 70 anos, eu me dei conta que a data ia passar despercebida, achei
que ninguém lembrava mais dele. Os que o conhecem só sabem de duas músicas, Pra
Não Dizer que Não Falei das Flores e Disparada. Não sabem que foi um
profundo pesquisador da música caipira, que fez trilha para Augusto Matraga,
que musicou Rosa. Foi gravado por Sérgio Endrigo e Ornella Vanoni. Foi cantado
por Joan Baez. Escrevi um artigo sobre os 70 anos dele, e foi impressionante a
repercussão”. O jornalista recebeu centenas de contatos, gente que se lembrava
das músicas, das peças, dos textos. Ele se deu conta que não estava sozinho em
sua “perseguição” àquele legado da música.
As coisas
que Nuzzi andava fazendo NÃO chegaram essa semana às boas livrarias do País e
NÃO estão à disposição nas lojas de comércio online de livros. Essas coisas que
levaram Nuzzi a ser chamado até de “espião” pelo artista compõem a biografia Geraldo
Vandré - Uma Canção Interrompida, um catatau de quase 400 páginas em que
obra, vida, percalços e idéias do cantor paraibano quase octogenário (fará 80
anos em setembro próximo; nasceu em 12 de setembro de 1935 em João Pessoa).
Ocorre
que esse é um livro que poucos lerão. Até agora, apenas 60 pessoas no Brasil
receberam um exemplar, todos amigos ou colegas de Nuzzi. Ele vai distribuir, ao
final, 100 exemplares da edição do autor que providenciou com seus próprios
recursos. Mas isso é uma insânia!”, digo a Nuzzi. “Concordo”, ele diz, rindo.
O autor
não tem interesse comercial. Diz que não é por medo do advogado Vandré e de uma
hipotética ação de retirada do livro de circulação. Pretende, nos próximos
dias, entregar um exemplar ao artista. “Se mandarem recolher, o máximo que
posso fazer é dar uma lista das pessoas para as quais eu presenteei o livro”,
diz.
Sua meta
é outra, e alguns diriam que é meio quixotesca. “Eu gostaria de diminuir a
mitologia e sugerir que se descobrisse mais a obra e se desse menos ênfase nas
lendas em torno do Vandré. Eu acho que a mitologia prejudicou o conhecimento da
obra dele”, afirma.
E qual é
o mito? Bom, Geraldo Pedrosa de Araújo Dias, o Geraldo Vandré, é sem dúvida o
personagem mais controverso da MPB. Sua trajetória se situa basicamente entre
1963 e 1970, ano em que fez seu derradeiro disco, no exílio, em Paris. Um belo
dia, em 13 de dezembro de 1968, após um show em Anápolis (GO) com o Quarteto
Livre, ele se mandou dirigindo seu Galaxie. “Eu parei ali. Acabou a
carreira. Não tive mais carreira”, ele diria, em 2013, em breve conversa por
telefone com o Correio Braziliense.
Vitor
Nuzzi diz que há três equívocos comuns sobre Geraldo Vandré na seguinte frase:
“Cantor de protesto que foi torturado e ficou louco”. Ele entrevistou mais de
100 pessoas, amigos próximos, colegas, intérpretes (como Jair Rodrigues),
coronéis, ex-agentes, porteiros de prédios e hotéis, conterrâneos, fãs e
pesquisadores. Poucos se recusaram a falar, entre eles Heraldo do Monte, Airto
Moreira e Renato Teixeira. Também tentou falar com Chorão, finado cantor do
Charlie Brown Jr, que fizera versão de Pra Não Dizer que Não falei das
Flores – mas não passou da assessoria de imprensa do artista.
Vandré
não foi cantor de protesto, embora tenha ficado famoso justamente por essa
canção que incorporou a sanha por liberdade de uma geração, Pra Não Dizer que
Não Falei das Flores. A canção, essa sim, encarnou um espírito de
resistência que emoldurou greves, protestos, manifestações, acirrou o espírito
anticomunista de certa parte da direita brasileira, cutucou onças com vara
curta. Seus versos, ambíguos e aparentemente inócuos, despertaram a ira de
censores.
O livro
mostra que Vandré tem senso de humor, que toma Coca-Cola, que brinca com a
própria música. Narra o episódio da entrevista “montada” de Geraldo Vandré ao Jornal
Nacional, dado ao cinegrafista Evilásio Carneiro, em 1973. Vandré chegou ao
País escoltado por agentes da repressão, e deu uma entrevista sob coação,
depoimento que o diretor da Globo, Armando Nogueira, afirmou que não tinha
condições de levar ao ar. O cinegrafista, que declarou que Vandré parecia ter
sido torturado dentro do avião no qual voltou ao País, passou dois meses sendo
seguido pela repressão. No final, foi ao ar uma versão editada em que a
narração em off não era nem mesmo de profissionais da Globo, era do próprio
regime militar. Era uma declaração de “arrependimento” do antigo inimigo do
regime, que desapareceria como artista a partir dali.
Mas a
convicção do biógrafo é que Vandré não foi torturado e não é absolutamente
louco – talvez um pouco excêntrico. Diz que seu livro não vai esclarecer os
pontos obscuros da trajetória do músico, o que aconteceu no período de sua fuga
e subsequente exílio. “Vai continuar misterioso”, avalia.
“Quase
todos os artistas de destaque na MPB dos anos 1960 tiveram problemas com a
ditadura, muitos deles foram exilados ou se recolheram. Mas todos voltaram. Ele
nunca voltou”. Também nunca mais fez shows, exceto uma apresentação curiosa num
cinema no Paraguai, em 1982, presenciada por 200 espectadores.
As aparições
de Vandré são raríssimas. Em 2010, deu uma entrevista a Genetton Moraes Neto,
da Globo News. Em março de 2014, fez sua última reentré: subiu ao palco como
convidado da cantora norte-americana Joan Baez, no Teatro Bradesco, na Barra
Funda, e até declamou um poema inédito.
O
biógrafo de Vandré, Vitor Nuzzi
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