Brasil: a dimensão geopolítica do golpe (3)
– ON 07/10/2016
Há inúmeros sinais de envolvimento dos EUA no golpe. Em declínio, Washington busca a chamada “hegemonia coercitiva”. Sua estratégia militar teme os BRICS. Suas ligações com José Serra e Sérgio Moro estão documentadas
Mais do que simples mudança de governo, a ruptura institucional consumada no Brasil visa reverter e inviabilizar o projeto de desenvolvimento nacional e regional que começou a ser estruturado a partir da eleição do governo Lula, bem como o movimento associado de reposicionamento estratégico do Brasil e da América do Sul no mundo. Ela se insere em ofensiva regional para desestabilizar os governos de esquerda e centro-esquerda que ascenderam ao poder nas duas ultimas décadas, que se traduziu na destituição dos presidentes democraticamente eleitos de Honduras (em 2009) e do Paraguai (em 2012 – neste caso, em processo de impeachment congressual, tal qual o Brasil); na sucessão de tentativas de golpe processados no contexto de aguda polarização político-social da Venezuela; no recurso a ações de aguda violência física extraparlamentar no Equador (em 2010) e na Bolívia (que se estende até os dias de hoje); e nas derrotas eleitorais impostas aos governos do Chile (em 2010, revertida em 2013), da Argentina (em 2015) e do Peru (em 2016). Um elemento comum a esses variados processos de desestabilização é a forte instrumentalização, por parte de conglomerados monopolistas privados de comunicação e seus aliados políticos, da bandeira da corrupção econômica ou moral para desconstruir e deslegitimar as lideranças políticas carismáticas que encabeçaram os processos de mudança na região, procurando minar e dividir sua base de sustentação congressual e social.
Esta contraofensiva conservadora no continente — com recurso crescente a métodos e alternativas antidemocráticas — relaciona-se à resposta dada pelas potências centrais, em particular os Estados Unidos, à erosão do seu poder hegemônico. Estudiosos das mudanças de ordens hegemônicas no sistema internacional indicam que, ao se deparar com o enfraquecimento do seu poder relativo na ordem mundial que encabeçam, as potências dominantes tendem a instrumentalizar unilateralmente os recursos de poder em que ainda tem prevalência, para tentar conter e/ou minar a consolidação de novos polos de poder no sistema (movimento que Robert Gilpin chama de passagem da “hegemonia benevolente” para a “hegemonia coercitiva”). Para além de variações de forma e de ênfase entre administrações republicanas e democratas, a evolução da política externa dos EUA nas duas últimas décadas é marcada pelo crescente recurso a ações unilaterais de força à margem das instituições multilaterais globais, como evidenciado nas desastradas intervenções no Afeganistão, no Iraque e na Líbia (além da frustrada escalada para intervenção na Síria), bem como no recurso intensivo a ações de “guerra cambial” (instrumentalizando o poder estrutural do dólar nos mercados globais) no contexto da crise econômica mundial deflagrada em 2007.
A consolidação mais recente dessa orientação encontra-se na Estratégia Militar Nacional 2015, elaborada pelo Estado Maior Conjunto das Forças Armadas dos Estados Unidos. Vale destacar que este documento oficial aponta que, mesmo na esfera militar, “vantagens competitivas mantidas pelos EUA por longo tempo estão hoje em xeque”. São identificadas duas ameaças principais à segurança dos Estados Unidos no contexto das rápidas mudanças em curso no cenário estratégico global. A primeira é a que o documento chama de “organizações extremistas violentas” (VEO na sigla em inglês), com destaque para o Estado Islâmico e para a Al Qaeda. Na sua origem, trata-se, na verdade, de organizações fomentadas e apoiadas pelos Estados Unidos no Oriente Médio para desestabilizar regimes considerados adversários (o regime pró-soviético do Afeganistão nos anos 1980 e os regimes seculares de orientação “anti-imperialista” – Iraque, Líbia e Síria – mais recentemente). Na medida em que passaram a alvejar, também, os EUA e seus aliados, foram classificadas como “extremistas”, “violentas” e “terroristas”. Mas segundo o próprio documento, as VEOs não constituem a principal ameaça à segurança dos Estados Unidos. A ameaça principal é a que o documento chama de “estados revisionistas”. Esta nomenclatura abarcaria os estados que procuram “revisar” aspectos cruciais dos processos e instituições que compõe a ordem mundial. Quatro países são explicitamente citados como integrantes desta categoria: Rússia, Irã, Coréia do Norte e China. No âmbito desta formulação, a mencionada agenda reformista dos países BRICs em relação às instituições e mecanismos de governança global passa a ser associada ao que a política de defesa dos EUA considera ser a “principal ameaça” à segurança do país.
A agenda externa dos Estados Unidos vem traduzindo essa formulação em ações, iniciativas e movimentos concretos. A política de cerco e contenção da Rússia materializou-se na expansão da OTAN para países e regiões que integravam o antigo bloco soviético na Europa Central e do Leste, bem como em ações para desestabilizar e depor governos que mantenham relações mais próximas a Moscou, como ocorreu na Ucrânia deflagrando a guerra civil que se estende até hoje no país. Em relação à China, para além de tentar isolar e conter a sua liderança na Ásia através da constituição do Tratado Transpacífico (TPP na sigla em inglês), os Estados Unidos vêm fomentando o acirramento das disputas territoriais de aliados regionais com o governo de Pequim no Mar da China, que já se tornou a principal rota comercial marítima do mundo suplantando em valor e volume de bens transportados a tradicional rota Roterdã‑Nova York.
Neste contexto, não constitui surpresa o fato de atores e interesses importantes na formulação e execução da agenda externa dos EUA verem com bons olhos a contraofensiva conservadora em curso na América do Sul. No caso do Brasil, para além do esperado e protocolar reconhecimento do Governo Temer como governo “de fato”, o embaixador dos Estados Unidos no Conselho Permanente da OEA avançou para a defesa do processo de impeachment no país contra as críticas formuladas por outros países latino-americanos. Mas para além do apoio, até que ponto houve protagonismo de atores e interesses responsáveis pela agenda externa dos EUA nos processos de desestabilização dos governos progressistas na região, e no processo de ruptura institucional no Brasil em particular?
Na prolongada crise política da Venezuela, o envolvimento dos Estados Unidos é mais evidente. No caso da crise política brasileira, há indícios que já podem ser apontados, e que certamente serão complementados por informações colhidas após a liberação posterior de arquivos oficiais para pesquisa, como aconteceu no caso do golpe civil-militar de 1964. Um primeiro forte indício veio com as informações vazadas pelo Wikileaks de Julian Assange em 2013, a partir de informações obtidas por Edward Snowden, que revelaram que o governo brasileiro era um dos principais alvos dos sistemas de monitoramento de comunicações pelos órgãos de segurança dos Estados Unidos, em especial a Agência de Segurança Nacional (NSA). O volume e grau de espionagem eram equivalentes ao dirigido aos estados acima apontados como “grave ameaça à segurança” dos EUA, nomeadamente a Rússia e a China. Para além de altos dirigentes do Estado brasileiro – incluindo a própria Presidente da República – outra alvo prioritário do monitoramento era a Petrobras. Vazamentos mais recentes da Wikileaks revelaram encontros patrocinados pela Embaixada dos Estados Unidos entre empresas petrolíferas americanas e líderes da oposição de então no Brasil, como o senador José Serra do PSDB, em que estes se comprometiam a alterar o regime de partilha na exploração do pré-sal caso viessem a ascender ao poder.
Um segundo indício remete às revelações do Wikileaks sobre relações de cooperação desenvolvidas por setores do Judiciário, da Polícia Federal e do Ministério Público do Brasil com órgãos de segurança e investigação dos EUA ainda em 2009, visando integração de ações e treinamento no combate ao “financiamento do terrorismo”, em um momento em que as autoridades do governo brasileiro responsáveis por conduzir a agenda internacional do país não consideravam essa temática adequada ou relevante para a cooperação do Brasil com os Estados Unidos. O Juiz Sérgio Moro foi protagonista destacado na viabilização desta cooperação. O objetivo manifesto era identificar e minar sistemas de lavagem de dinheiro associados ao financiamento de grupos terroristas. Para tal, foram instituídos procedimentos para troca de informações e treinamento em “melhores práticas” para a sua obtenção e validação. Curitiba foi um dos centros selecionados para o treinamento continuado de forças-tarefas nas referidas práticas.
Da “Guerra ao Terror” à “Guerra à Corrupção”
No caso da “Guerra Global ao Terror” deflagrada pelos EUA após os atentados de 11 de setembro de 2001, sabemos que isso significou fortes ataques e violações de direitos civis e humanos, a ponto de validar práticas de tortura para a obtenção de informações (desde que não praticadas contra cidadãos americanos). A lógica era de que os “fins” (combate ao terrorismo) justificavam os “meios” (restrição de direitos civis e violação de direitos individuais). A mesma lógica foi reproduzida na Operação Lava Jato, com outros “fins” (o combate à corrupção) justificando práticas violadoras de direitos e garantias individuais, como a prisão por tempo indeterminado de suspeitos até que estes firmassem acordos de delação confirmando as acusações dos investigadores; o vazamento seletivo e antecipado para os meios de comunicação de partes do processo de investigação para criar na opinião pública juízo condenatório de lideranças políticas e empresariais suspeitas (alimentando a campanha mediática para deslegitimar as principais lideranças do novo ciclo político no país); o vazamento de diálogos captados ilegalmente, inclusive da própria Presidente da República; a gravação ilegal de diálogos de advogados de defesa em pleno exercício profissional; a negação do princípio constitucional fundamental da presunção de inocência dos acusados; entre outros. Baseados na experiência norte-americana, operadores da Lava Jato defendem abertamente, inclusive, que até mesmo provas ilícitas devem ser validadas em processos investigatórios quando obtidas “de boa fé”. Essas práticas, examinadas em chave weberiana, substituem a ética prudencial da política pela vontade punitiva de estratos do aparato estatal com função investigatória que atuam com autonomia quase ilimitada e, por não integrarem o sistema político formal, não têm de prestar contas pelas consequências dos seus atos. Como a possibilidade de algum grupo recorrer a ações terroristas é permanente — bem como o é o risco da malversação de recursos públicos por gestores desonestos — banaliza-se o uso seletivo e politicamente orientado de práticas e expedientes próprios de regimes de exceção: uma grave ameaça ao Estado Democrático de Direito, conquistado há tão pouco tempo – e a duras penas – no Brasil. Mas é mais do que isso.
Os principais alvos da operação, como se sabe, são justamente as empresas estatais e privadas que desempenharam papel estratégico e estruturante no novo projeto nacional de desenvolvimento que se gestava no país e nas iniciativas de integração física da América do Sul (com destaque para a Petrobras e as grandes empresas nacionais de construção de infraestrutura). Essas empresas – e as críticas cadeias de valor a elas associadas – foram cerceadas, estranguladas e inviabilizadas, contribuindo decisivamente para a crise econômica que se instalou no país a partir de 2015, o que alimentou, por sua vez, a crise política que resultou no impeachment. Ou seja, os prejuízos econômicos e sociais provocados pelos métodos adotados no “combate à corrupção” são incomparavelmente maiores e mais profundos do que os gerados pelos atos de corrupção em si. Há que se ver e comprovar, ainda, até que ponto informações fornecidas seletivamente pelo FBI e outros órgãos de investigação dos Estados Unidos contribuíram para este desfecho, atendendo objetivos mais amplos da agenda externa dos EUA. O fato é que as consequências econômicas e políticas da operação desestabilizaram não apenas o governo, mas todo o projeto nacional e regional de desenvolvimento e os seus atores estratégicos.
Isto não significa que, em nome da preservação desse projeto, devamos ser lenientes e permissivos com práticas de corrupção. O ponto é que o combate à corrupção não pode ser conduzido com base na violação de direitos e garantias individuais, e a punição dos dirigentes empresarias e políticos envolvidos no desvio e apropriação de recursos públicos não pode acarretar a paralisia e/ou inviabilização de empresas essenciais para o desenvolvimento do país. Vale registrar, como exemplo, a experiência da Alemanha na reconstrução do pós-guerra, que preservou e viabilizou empresas que haviam cultivado relações estreitas com o regime nazista e lucrado com atividades associadas ao trabalho forçado e ao extermínio (como a Bayer, Hugo Boss e Siemens, entre outras).
As punições dos dirigentes envolvidos e as indenizações determinadas para a reparação das vítimas não inviabilizaram a continuidade da operação dessas empresas, consideradas atores fundamentais e estratégicos para a reconstrução econômica e o desenvolvimento da Alemanha.
Perspectivas Pós-Ruptura
A ruptura democrática em curso no Brasil configura-se, assim, como ruptura de um projeto de desenvolvimento, executada por um governo não sufragado pela soberania popular para exercer as funções que ocupa. Os anúncios iniciais do novo governo apontam para um retrocesso global, não apenas em relação ao projeto de desenvolvimento que começou a ser estruturado na última década, mas também em relação a conquistas sociais da Constituição de 1988 e da própria Revolução de 30. Anuncia-se o congelamento do patamar de investimentos em Saúde e Educação até 2037 (para garantir a transferência ilimitada de recursos da sociedade para o capital financeiro via dívida púbica); o desmonte das bases de proteção ao trabalhador sacramentadas na CLT (com a promoção da terceirização e o predomínio de acordos negociados sobre as garantias legais); a desvinculação da previdência do sistema de seguridade social (com perda de direitos de aposentadoria e da sua dimensão redistributiva); a retração dos bancos públicos (com reorientação da sua atuação para fomentar processos de privatização); entre outros. Não está claro, ainda, o que será efetivamente proposto ou implementado nesta agenda. Afloram as tensões e contradições na própria base do novo governo em relação a essas propostas, e a oposição da base social do governo deposto se rearticulou de forma rápida e contundente contra os novos rumos anunciados.
A dimensão em que a reorientação de rumos pelo novo governo avançou mais rapidamente foi na agenda externa, com o desmonte do papel de pivô da integração sul-americana exercido pelo país neste início de século. Sob a liderança de José Serra no Ministério das Relações Exteriores (MRE) foram abertos contenciosos diplomáticos com inúmeros vizinhos, configurando um retrocesso até mesmo em relação às iniciativas de aproximação e integração promovidas pelos governos Sarney, Itamar e FHC. Não está claro, ainda, qual será a posição do novo governo em relação à iniciativa BRICS. O governo dá sinais de que poderá enfraquecer a atuação do bloco, para privilegiar uma relação bilateral mais próxima com a China. De maneira geral, o que parece orientar a sua agenda externa é a retomada, em bases mais extremadas, da politica que marcou os anos FHC e que seu finado chanceler Luiz Felipe Lampreia cunhou de “autonomia pela integração”: a compreensão de que o melhor caminho para o país se se desenvolver é buscar nichos favoráveis em cadeias globais de valor comandados pelos centros ainda dominantes do sistema. Mas essa orientação não corresponde à profunda transição em curso na ordem mundial, examinada nesta conferência. Essa transição estrutural tende a minar – a médio e longo prazo – a agenda das forças internas e externas que provocaram a atual ruptura institucional no Brasil, o que abre caminhos políticos para a retomada do projeto de desenvolvimento nacional e regional interrompido, com a devida superação de erros e limitações da sua primeira etapa de implantação.
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*Este texto, que Outras Palavras publica em três capítulos, corresponde à aula inaugural proferida no IESP/UERJ em 5 de setembro de 2016. O trabalho intitula-se, originalmente, “Da Transição na Ordem Mundial à Ruptura na Ordem Democrática Nacional”. A responsabilidade pela divisão em três capítulos, e por seus novos títulos, é de nossa edição
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