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Senso Incomum
Advocacia virou exercício de humilhação e corrida de obstáculos
Esta coluna tem um subtítulo, que poderia ser Ação penal fast food do Acre, indenização de R$ 7 na Bahia e fonte secreta para decretação de prisão no RN: o que mais vem ai?
Por isso, peço paciência e muita reflexão. Deixemos o tempo da
pós-modernidade de lado. Sejamos apenas bons modernos. E leiamos a
coluna até o final, desarmados. Com efeito. Nestes tempos difíceis de
descumprimento de leis, códigos e da Constituição e do marasmo da
dogmática jurídica que insiste, regra geral, em repetir catilinárias que
tecem loas às velhas posturas protagonistas, lembro de As Vinhas da Ira,
de John Steinbeck. O bebê nascido morto e prematuro. Tio John leva o
caixote em que jaz o pequeno cadáver para longe do acampamento. Mas, ao
invés de enterrá-lo, deposita-o sobre as águas revoltas de um riacho que
a enchente tornou violento. Ao ver o caixote — usado para o transporte
de maçãs — sendo levado pelas forças das águas, ele, tão calado e
contido, incapaz de se queixar das agruras do cotidiano, grita ao bebê
morto, como em um “desabafo fundamental e transcendental”:
Vai,
vai rio abaixo e diz aquilo para eles. Vai descendo e estaca na estrada
e apodrece e diz para eles como é. É o único jeito de tu dizeres as
coisas. Nem sei se tu és menino ou menina, mas nem quero saber. Vai
descendo e apodrece na estrada. Talvez, então, eles fiquem sabendo.
Sim
— acrescento — talvez então “eles” fiquem sabendo... Na metáfora dos
caixotes navegam para o apodrecimento os restos da ciência jurídica e de
uma dogmática que que entregou ao simplismo, ao concursismo e ao
manualismo mais raso... Talvez o apodrecimento nas margens seja o único modo de dizer “coisas” para eles!
Por
que a dramaticidade? Porque parece que está cada dia mais difícil dizer
o óbvio. E clamar que acreditem no óbvio. Eu poderia começar com um
caso ocorrido na Bahia, acerca da determinação de um juiz para que uma
operadora de telefonia (companhias telefônicas são hipossuficientes!!!)
pagasse uma indenização de R$7,47 (setereaisequarentaestecentavos) a uma cliente que foi molestada em R$ 193,50 (ler aqui).
A Associação dos Magistrados da Bahia justificou a decisão, dizendo que
“as decisões judiciais não refletem as posições pessoais dos
magistrados. Elas são fundamentadas na legislação vigente e no livre convencimento do mesmo” (ler aqui).
Bingo. Viva o livre convencimento. Ele está aí. Serve para blindar
qualquer decisão. Ah: será que a associação de classe dos juízes
esqueceu que o novo Código de Processo Civil retirou a palavra “livre”
(artigo 371)? Portanto, nem a nota oficial se baseou na legalidade.
Bem... o que mais precisaria ser dito?
Poderia parar a coluna com a
notícia da Bahia. Mas vou seguir. Com John Steinbeck, que também achava
difícil denunciar o sistema econômico-social dos Estados Unidos dos
anos da grande depressão. Quem lê o livro ou vê o filme, chora. A metáfora do caixote e a mudez do Tio John nos apontam para modos de deixar que as coisas nos falem.
Como dizia Gadamer, se queres dizer algo sobre um texto, deixe que o
texto diga algo. Deixemos que as coisas nos digam. Talvez fazer palavras
com coisas...
Abusos. Descumprimento de garantias. Coisas
mínimas. Coisas máximas. Ministro da Justiça, que, como secretário,
inventou um novo modo de reintegração de posse. Na marra. Advogados que
não podem se entrevistar com os clientes face a uma portaria do
Ministério da Justiça. A portaria vale mais do que a Constituição. E não
é contestada pelo Ministério Público. Ainda aplicamos a tese da
inversão do ônus da prova penal. Enunciados que valem mais do que o CPC.
Presunção da inocência que vira a não-presunção. Positivismo
jurisprudencialista tomando conta do direito (não há mais leis e CF; existe só o que o judiciário diz que as leis e a CF são; sai a lei e entra a jurisprudência...
E tem gente dizendo que o CPC fundou um sistema de precedentes... que
lástima). Somando tudo, temos o que temos. Sequer conseguimos fazer
cumprir o novo CPC. Afora isso, as vinhas-da-ira-epistêmica aqui se
voltam para as audiências de custódia, darwinianamente adaptadas por
juízes e promotores para que as coisas continuem como estão. Claro que
os números mostram avanços. Mas poderíamos avançar mais.
Vejam o
caso ocorrido no Rio Grande do Norte. Audiência de custódia (AC).
Presentes o advogado, a ré, a promotora e o juiz. Apresentado o réu (ou
seja, dado o corpo ao juiz, como quando do surgimento do habeas corpus
no século XIII), o Ministério Público pede a preventiva. O advogado pede
a liberdade provisória com ou sem as medidas cautelares, invocando
jurisprudência do STF no sentido de que a gravidade do crime não
justifica, per se, a prisão cautelar. Até aqui, tudo normal. Tudo legítimo.
No
entanto, disse o juiz que não seguia essa (sic) jurisprudência do
Supremo. E falou da gravidade do crime imputado ao flagrado. Manteve a
ré presa (houve mais duas pessoas que foram apresentadas, mas não
interessam aqui). Mas isso até nem impressiona para os fins desta
Coluna. O fato é que o magistrado, para “fundamentar” a prisão, disse
que recebeu informações extra autos que justificavam a prisão
de uma acusada e a soltura de outra. As informações teriam sido passadas
a ele por fonte fidedigna. O causídico, então, requereu que essas
palavras do juiz fossem colocadas em ata. Afinal, informações extra
autos são coisa séria. Além disso, a própria questão relacionada a
jurisprudência do STF, contestada pelo magistrado.
Qual é o
busílis? O busílis é que o juiz se negou a relatar o que ocorreu, ou
seja, escrever o que usara como fundamento. Segundo ele — há gravação de
áudio dessa parte — esse procedimento de AC não tem ata ou formalidade
para registrar o que se passou. Consequentemente, negou o pedido de
transcrição no termo ou ata (seja lá o nome que se dê a isso). O
causídico foi buscar socorro na OAB. Pediu, formalmente, que fosse
registrada essa circunstância.
Pronto. Não importa, aqui, o resultado. Não importa, também, se o preso apresentado na AC deveria ou não ficar preso. Isso é mérito e nele não adentro.
O que importa é o simbólico disso. Como é possível que o juiz diga que
tem informações extra autos provenientes de fonte fidedigna e o advogado não tenha o direito de conhecer tais elementos que, provavelmente, foram fulcrais para a decretação da prisão?
Íntima convicção do juiz? Isso pode vir de algum lugar secreto? De
cocheira? Que fonte fidedigna seria essa? O que é isto, informação extra
autos? Quer dizer que o sujeito pode ser preso porque o juiz ficou
sabendo de coisas que não estão nos autos? O que está fora dos autos,
nestes tempos de pós-modernidade, “virou” processo?
Acontece que
isso ocorre todos os dias e nos vários campos do Direito. Trata-se de
discutir o direito de o advogado ter a transparência do que ocorreu. O
juiz agiu fora dos pressupostos previstos no CPP e no Estatuto da
Advocacia, negando-se a colocar em ata coisas fundamentais ocorridas na audiência
(de custódia). Ocorre que o que havia ali ocorrido fora uma audiência.
Pública. É, pois, direito da parte, do réu, do preso, fazer constar tudo
o que ocorreu na audiência. Ouvem-se pessoas. Inclusive são ouvidos o
MP e a defesa. Logo, isso tem de ser formalizado. No caso aqui
evidenciado, ouvi a gravação e o juiz dizendo que não fará constar em
ata, com informações do tipo “esse é o meu procedimento”. Ah é? Será que
o juiz leu a Resolução 18/2015, do TJ de seu estado, que diz no
artigo 3º, §4, que “Será lavrado termo sucinto da audiência de custódia contendo
os fundamentos da decisão judicial proferida, seu dispositivo e o que
mais for relevante para o ato, o qual deverá permanecer em autos
apartados do processo principal”. E o que dizer das resoluções do Conselho Nacional de Justiça (por exemplo, a 213, em seu artigo 8º, § 3º)? E a CF? E o CPP?
Pior
ainda: o Ministério Público, fiscal da lei, nada fez. Quedou-se silente
em relação ao requerimento do advogado, ao que sei. O que quero dizer
é: no momento em que o advogado pede/requer para fazer constar por
escrito isso que ocorreu (de que o juiz teria dito que tinha informações
relevantes extra autos), das duas, uma: a) ou o advogado está faltando
com a verdade, fazendo chicana e, portanto, o MP, fiscal da lei, deve
agir, ou b) se de fato o juiz disse que tinha informações extra autos, o
MP, ao nada fazer, corre o risco (estou sendo generoso) de prevaricar.
Ou no mínimo de não ser diligente e se portar como um mero acusador e
não como um promotor de justiça, como requer a CF.
Quando ao proceder do juiz, o que dizer? Milhares de advogados sofrem com esse tipo de coisa todos os dias. Exercer a advocacia nestes tempos difíceis é um exercício de humilhação cotidiana,
como me disse dia desses uma pessoa muito próxima, que sofre
cotidianamente com esse tipo de coisa. Só para registrar, de novo: eis
um jogo de soma zero e que atinge também o MP, que não se dá conta
dessas coisas, porque se comporta como o antigo “promotor público”.
Explico:
a) se o advogado pediu algo que não ocorreu, então, mente ou
b) se o juiz se negou a transcrever o que houve, então o juiz pratica abuso. Logo, conclusão: há erro de um ou de outro.
Mas, nas duas hipóteses, o MP erra, ao se quedar silente diante de um dos dois erros. Tertius non datur.
Ah,
essas coisas de Pindorama. Essa racionalidade teológica do direito,
como diria Hans Albert. Depois ouvimos, em congressos por aí, juízes e
promotores falando em direitos fundamentais. Isso, no público. No
particular, ouve-se mais coisas do tipo “lá na minha vara não tem essa
coisa de advogado...”. “Na minha promotoria...”. Bom, o resto os
leitores podem completar. Nas audiências trabalhistas, o sofrimento dos
advogados é cada vez pior. A demo-cracia não chegou à sala de audiência.
Eis
um problema que venho denominando de PCJ (Privilégio Cognitivo do
Juiz), sufragado pela dogmática jurídica nos livros e nas salas de aula
em um país que nem tem quadros para lecionar em tantas faculdades.
Professores formados a machado para suprir tantas vagas em tantas
faculdades. Um país de direitos simplificados, facilitados,
mastigados... Compêndios. Resumões. Coachings. Interessante: Essa mesma
dogmática queijo suíço se queixa exatamente daquilo que ela mesma sempre
fomentou: que no processo, há um PCJ. Tenho amigos, juristas
importantes, que levaram anos para me dar razão. Eles achavam que, em
sendo o livre convencimento “motivado”, estava atendido o requisito constitucional da fundamentação. Queriam me aplicar a velha história da prova tarifada
(como disse um outro Amigo dia destes, ironicamente, “- hoje se a prova
fosse tarifada, seria bem melhor...”!). De todo modo, para minha
satisfação, hoje uma pequena parcela dos processualistas concorda comigo
nessa cruzada contra o protagonismo, o instrumentalismo, o livre
convencimento (que é um problema filosófico-paradigmático e não de
história de tarifação de prova) e tudo o que disso decorre na vida dos
causídicos e dos cidadãos submetidos ao MP e ao PJ. O acusado acaba
dependendo do PCJ e não do arsenal de garantias que a CF e o CPP lhe
dão. E isso não é democrático.
Aliás, sobre audiência de custódia, lembro aqui parte de texto publicado por Pedro Abramovay (aqui):
“Em primeiro lugar, os juízes se utilizam da ideia de que não se julga o
mérito nas audiências de custódia de maneira bastante arbitrária. As
audiências de custódia, de fato, não são audiências finais, nas quais se
profere uma sentença de condenação ou não do réu. Mas é claro que o
mérito é relevante. Isso aparece em muitos momentos na justificativas
dos juízes para manter os réus presos. Mas cada vez que a defesa tenta levantar uma questão de mérito os juízes não admitem escutá-los”.
O texto de Abromovay é autoexplicativo. Não quero me estender porque
colunas com mais de três páginas fracassam. Esta aqui já deu quatro.
Provavelmente fracassará.
Post scriptum1: Paradoxo: atirar no tatu pode ser menos grave que atirar no fiscal
Um bom exemplo para me dar razão nas coisas que escrevo é o caso
do dono de banca de jornal condenado a mais de 7 anos de prisão por ter
cometido crime contra a honra de um juiz. Preso desde dezembro de 2015,
teve três habeas negados. Pois não é que, saindo uma reportagem no
jornal O Estado de S. Paulo (reproduzido pela ConJur) e, bingo. No dia seguinte foi concedido o habeas corpus pelo mesmo desembargador que negara três vezes. Eis aqui uma boa lição para a doutrina, que, como venho dizendo, deve voltar a doutrinar.
É a doutrina que deve constranger... e não a mídia. A doutrina deve ter o poder da mídia. Em 24 horas a mídia conseguiu o que o processo penal ordinário não conseguiu em 8 meses.
Simples assim. É vergonhoso. Pavoroso. A pergunta que fica é: essa
decisão apaga os erros das decisões anteriores? Qual teria sido a
posição do Ministério Público? A malta toda quer saber. A qualidade da
vítima foi fulcral, pois não? Ou alguém, de sã consciência, acredita que
um crime de menor potencial ofensivo acarrete uma prisão cautelar de
mais de 8 meses e uma pena maior do que de homicídio simples? Basta
olhar a jurisprudência. Ou alguém acredita que, se a vítima não fosse um
juiz, a pena seria essa? Isso é bizarro. Parece aquela piada do
campesino que atira em um tatu e recebe o conselho de, na próxima vez,
atirar no fiscal do Ibama em vez de tatu ou onça. Por que? Porque, por
matar o tatu, a possibilidade de ficar preso antes da sentença era bem
maior. É uma anedota-metáfora. Cultura popular. Exagero que diz muito.
Post scriptum 2: No Acre, uma ação penal em 24h? Fast food processual?
Fiquei sabendo que o MP do Acre está exultante com uma ação penal em
que, no mesmo dia, houve denúncia, instrução, julgamento e sentença (ler aqui).
Crime de roubo. Pena de 5 anos e 4 meses. O que dizer disso? Processo
virou “isso”? Porque não dispensamos logo os advogados? Vamos fazer tudo
sumarissimamente. Em um dia. Claro: para a patuleia. As experiências
sempre se fazem com os patuleus em um país periférico. A propósito: em
quanto tempo o MP devolve os autos de um habeas corpus lá no Acre? E no
resto do país? E em quanto tempo é julgado um habeas no Acre? E no resto
de Pindorama? E os recursos da LEP? Levam só 24 horas? Façam-me o
favor. Vamos todos para Estocolmo. Este ano vai ter Nobel para o Brasil.
Uma palavra final...
Em um país com um milhão de advogados, os leitores não acham que estamos
indo longe demais? Será que não estamos esticando a corda para além do
permitido? Ainda temos uma demo-cracia?
Eis porque coloquei no início da coluna o romance premiado de Steinbeck, As Vinhas da Ira: “— Vai, vai rio abaixo e diz aquilo para eles”. Deixemos, pois, que as coisas digam para eles todos. Deixemos que as coisas falem. Já que não somos ouvidos, talvez “as coisas” falem mais alto.
E uma conclamação pela dignidade da advocacia: advogados de todo o Brasil, façamos do dia 11 de agosto um dia de reflexão. De verdade. Depois da ação penal fast food, da indenização de R$ 7, da prova secreta e do sujeito que ficou preso 8 meses por crime de menor potencial ofensivo, acho que chegou a hora de dizer que a quem vêm os advogados. Endireitar a coluna vertebral. Não mais passar por debaixo da porta do fórum. É isso. Só tem dia comemorativo quem não tem vez.
Dia do negro (os outros dias são dos brancos); dia do trabalhador (os
demais são dos patrões); dia do índio (o resto...); dia da mulher (o
resto...). E assim por diante. Dia do advogado. Dia 11. Os outros dias
são de quem? Responda você. Reflita. Façamos os outros dias de dignidade
para os advogados. Sem súplicas. Sem humilhações. Sem corrida de
obstáculos. Sem ter que discutir o óbvio para exigir os mínimos direitos
como fazer constar alguma coisa em ata. Advogados de todo país:
uni-vos. Nada tendes a perder depois de tudo que já perderam. Passem a
frente esta corrente pela dignidade da profissão.
Lenio Luiz Streck é
jurista, professor de direito constitucional e pós-doutor em Direito.
Sócio do Escritório Streck, Trindade e Rosenfield Advogados Associados:
www.streckadvogados.com.br.
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