POR José Geraldo Couto:http://www.blogdoims.com.br/ims/que-horas-ela-volta
Que horas ela volta?, de Anna Muylaert, tem tudo para se tornar um marco no cinema brasileiro contemporâneo, como foram, em outros contextos, Central do Brasil e Cidade de Deus.
É um filme em plena sintonia com o “pulso” do país. Encara com
originalidade e coragem um momento de transformações sociais mais ou
menos profundas, mais ou menos traumáticas – e, por favor, não estamos
falando aqui de disputas partidárias ou programas imediatos de governo
ou de oposição.
A figura central na arquitetura narrativa do filme, como se sabe, é a
da empregada doméstica, aquela trabalhadora que dorme na casa dos
patrões e é como que uma descendente da mucama da época da escravidão e
também do “agregado”, tão frequente na obra de Machado de Assis. É
aquela que “é praticamente da família” – desde que conheça o seu lugar e
se conforme com ele.
E é exatamente esse “lugar”, ou a sua redefinição em nossa época, que
o filme de Anna Muylaert vai observar, com um olhar ao mesmo tempo
arguto, sutil e amoroso. Quem o ocupa é a doméstica Val (Regina Casé),
que mora na casa dos patrões no Morumbi e ajudou a criar o filho do
casal, Fabinho (Michel Joelsas), hoje um rapagão aspirante a uma vaga na
universidade.
O drama e a comédia (nos filmes da diretora, os dois vêm sempre
juntos) começam quando Val recebe a visita inesperada da filha, Jéssica
(Camila Márdila), que vem a São Paulo prestar vestibular para
arquitetura.
Dramaturgia dos espaços
A chegada de Jéssica traz instabilidade a um terreno que parecia
sólido e imutável. Os espaços ameaçam tornar-se indefinidos, confusos,
inseguros. Tudo, no fundo, é uma questão de arquitetura, e por isso boa
parte dessa história é contada pelos ambientes: o quartinho de Val, a
cozinha, a piscina, o quarto de hóspedes, o ateliê do patrão (Lourenço
Mutarelli). Cada um desses locais adquire um sentido social, cultural e
dramático profundo no desenrolar da narrativa.
Também os objetos dizem muito: o sorvete de Fabinho, o jogo de café
que Val dá de presente à patroa (Karine Teles), a bandeja de prata da
bisavó. Nada é gratuito ou supérfluo.
Nesse contexto narrativo concentrado, em que tudo “significa”, não há
de ser casual que os lugares de São Paulo que o patrão galanteador
apresenta a Jéssica – o edifício Copan e o prédio da Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo da USP – sejam obras de arquitetos comunistas
(respectivamente, Oscar Niemeyer e Vilanova Artigas) que apostavam, ao
menos em tese, na utopia dos espaços livres e igualitários, na abolição
das barreiras e hierarquias sociais. Não é por acaso também que o ponto
de encontro entre o patrão e a filha da doméstica se dá no ateliê dele,
uma edícula separada da parte principal da casa e como que à margem de
sua estratificação espacial.
Opressão cordial
Falou-se muito, e com razão, do desempenho marcante de Regina Casé no
papel principal. Quando bem dirigida e despida das estridências
televisivas, é de fato uma atriz extraordinária, senhora absoluta do
ritmo, da prosódia, das modulações de voz. A sequência em que ela ensaia
a montagem do jogo de café na bandeja é digna de qualquer antologia.
Mas o restante do elenco não destoa. Camila Márdila encarna à
perfeição a jovem de uma classe social emergente, que não mais se
encaixa passivamente numa ordem discriminatória, humilhante. Suas
atitudes, desrespeitando as regras tácitas que os pobres “já nascem
sabendo”, como diz sua mãe, são mais eloquentes que qualquer discurso
político.
Houve quem criticasse a ótima atriz Karine Teles por compor, no papel
da patroa, uma “megera de telenovela”. Discordo. A competência da atriz
está justamente em mostrar as atitudes da personagem como expressão de
uma espécie de internalização de seu papel social, formado por séculos
de dominação disfarçada, de “opressão cordial”.
Ao sorrir de surpresa quando ouve que Jéssica prestará vestibular
para a FAU, a patroa está, sem perceber, sendo tão violenta quanto ao
mandar limpar a piscina depois que a mesma Jéssica entrou nela de roupa e
tudo. Há toda uma educação para o “mando democrático e liberal”
condensada nessa personagem. De resto, nossa classe média está repleta
de “megeras de telenovela”. Basta olhar em volta.
Detectar a persistência do arcaico de nossa formação sob as
aparências do moderno tem sido a marca de uma certa linhagem de filmes,
em que se destacam O som ao redor e Casa grande. Que horas ela volta? faz
parte dessa família cinematográfica, com a diferença, talvez, de
colocar a ênfase nas forças de mudança. Além disso, entrelaça à questão
social um poderoso melodrama sobre a condição materna, o que aumenta seu
poder de comunicação com o público. Tudo indica que a repercussão será
grande